segunda-feira, 13 de junho de 2011

Minhas Memórias de Lobato



Minhas Memórias de Lobato
Contadas por Emília, Marquesa de Rabicó e pelo Visconde de Sabugosa


Luciana Sandroni




Por incrível que pareça, Emília andava muito quieta. Pensava o dia inteiro em que aventura ia se meter desta vez. Pedrinho e Narizinho estavam na escola, e ela não poderia esperar para aprontar alguma. Dona Benta, Tia Nastácia e o Visconde estavam desconfiadíssimos de que algo ia acontecer, e com certeza ia nascer daquela cabecinha. Dito e feito. Dali a pouco, lá veio ela com mais uma das suas:
— Tive uma idéia mirabolante! Vou escrever minhas memórias.
Dona Benta não entendeu nada. Será que Emília estava sofrendo de amnésia e tinha esquecido que já tinha escrito as “Memórias da Emília”?
— Mas, Emília, você já escreveu suas memórias. Não me diga que já tem um segundo tomo!
— Não, é que eu tive a idéia de escrever as memórias do Monteiro Lobato, e é claro que metade do livro vai ser sobre mim, já que eu sou a personagem mais importante que ele criou. Por isso o livro vai se chamar "Eu e Lobato".
Dona Benta ficou rindo da gabolice da Emília e, apesar de ter achado que a danadinha teve realmente uma boa idéia, pôs um pouco de lenha na fogueira para ver o que a boneca ia dizer:
— Mas, Emília, está certo que o Lobato ficou muito famoso porque escreveu os livros aqui do Sítio, e colocou na sua boquinha todas as críticas e reclamações que ele teve deste mundo, mas além disso ele foi um grande contista, inventou o Jeca Tatu, fez campanha sanitarista, foi um grande editor de livros e, como você deve saber, foi um dos primeiros brasileiros a bater o pé dizendo que no Brasil tinha petróleo, numa época em que todo mundo ria disso. Parece até que você não leu “O poço do Visconde”. Então, eu acho que o livro deve se chamar "Lobato e o petróleo".
— "Lobato e o petróleo"? Que idéia, Dona Benta! É claro que eu sou muito mais importante pro Brasil que o petróleo! Eu sou a independência ou morte! A senhora só pode estar brincando! Está certo que eu escreva um capítulo sobre o petróleo, ou melhor, um parágrafo, mas mais que isso não tem “caimento”!
— Cabimento, Emília.
— “Caimento”! Caimento!
Dona Benta parou de atiçar a boneca e resolveu saber como ela pretendia começar a escrever as memórias:
— Está bem, Emília, que seja um parágrafo, mas e o resto? A vida do Lobato não se resume a você e uma linha sobre a Campanha do Petróleo. Você vai ter que fazer uma pesquisa sobre a vida dele, e olha que tem muita coisa para ler. Tem “A barca de Gleyre”, que são quarenta anos de correspondência com o amigo Godofredo Rangel, tem “Monteiro Lobato”, vida e obra do Edgar Cavalheiro, tem “Monteiro Lobato” para crianças, do Alaor Barbosa, tem...
— Chega! Chega, Dona Benta! Eu não vou fazer porcaria de pesquisa nenhuma! Eu vou escrever tudo da minha cabeça, como todos os escritores! Duvido que alguém faça pesquisa. Eles dizem que fazem, mas no fundo saem inventando um monte de lorotas e todo mundo cai feito um patinho. Os poetas, por exemplo, aposto que são os primeiros que não fazem pesquisa, vivem mentindo e ninguém reclama. A senhora mesma estava lendo um poema outro dia que dizia que um tal de José queria ir pra Minas mas não podia porque Minas tinha acabado. Eu fui correndo olhar no mapa do Pedrinho e vi que Minas Gerais continuava lá, firme. Ele destruiu um estado inteiro, Dona Benta, e todo mundo achou bonito!
— O poeta se chama Carlos Drummond de Andrade, Emília, e o que ele fez foi licença poética. Ele quis dizer que para ele Minas acabou, porque não é mais a Minas da infância dele, entendeu? No seu caso é diferente, você não está fazendo poesia e sim uma biografia. Não pode inventar a vida de uma pessoa que nasceu, foi criança, cresceu, publicou livros, casou. Você tem que pesquisar, ver as datas, os nomes. Tem que ler todos os livros sobre ele, mas sem inventar. Vá lá que você invente nas suas memórias o que não aconteceu realmente, mas nas dos outros é demais, Emília!
Emília viu que Dona Benta estava danada com aquela história de escrever a vida do Lobato sem pesquisar e então teve uma idéia:
— Está bom, a senhora ganhou, vai ter pesquisa, sim, mas só um pouquinho, e quem vai fazer é o Visconde!
E saiu no maior assanhamento atrás do Visconde, deixando Dona Benta aflitíssima:
— O que é que essa boneca vai fazer com a vida do Lobato?! Na certa vai aprontar uma confusão dos diabos!
Emília encontrou o Visconde na biblioteca, e não quis nem saber o que ele estava fazendo; foi logo dando ordens:
— Visconde, você vai ser meu secretário! Vou escrever as memórias do Monteiro Lobato. O livro vai se chamar "Eu e Lobato".
O sabuguinho de cartola levantou os olhos para o teto, como se dissesse: "lá vem mais uma!". Emília nem deixou o Visconde falar; continuou dando ordens e mais ordens:
— Nem adianta fazer essa cara, senhor Visconde. Veja logo papel, pena e tinta. Vou começar a ditar! E veja se desta vez não me trai, hein?
Quando Emília obrigou o Visconde a escrever as memórias dela enquanto a danada brincava com o Quindim, ele deu uma de espertinho e escreveu coisas horrorosas sobre a boneca: "Emília é uma tirana sem coração. Não tem dó de nada. Quando Tia Nastácia vai matar um frango, todos correm de perto e tapam os ouvidos. Emília, não. Emília vai assistir. Dá opiniões, acha que o frango não ficou bem matado, manda que Tia Nastácia o mate novamente e outras coisas assim".
O Visconde foi logo se defendendo:
— Se você não gostou daquela parte do livro, poderia muito bem ter censurado. Não cortou porque não quis, senhora Marquesa; aliás, disse que era assim mesmo, como eu escrevi.
— E sou assim mesmo, e a culpa é da Tia Nastácia, que me fez assim! Agora vamos deixar de lero-lero e vamos começar as memórias.
— Mas, Emília, você já leu alguma coisa sobre o Lobato, já se informou de alguma característica da vida dele, os fatos mais marcantes, a infância, os estudos, as primeiras leituras?
— Ai! Que droga! Por que você e a Dona Benta não vão pentear macacos? Puxa, eu tenho uma idéia maravilhosa dessas e vocês só sabem falar de pesquisa e mais pesquisa! Está tudo aqui, na cachola!
O sabugo resolveu parar de falar para ver as asneirinhas que a boneca ia dizer. Trouxe papel, pena e tinta. Como sempre, Emília não tinha a mais remota idéia de como começar, e, tal como nas suas memórias, fez exigências esdruxulíssimas para adiar o início do livro:
— Esse papel não serve, quero papel cor do céu com todas as suas estrelinhas! E essa tinta também não serve, quero tinta cor do mar com todos os seus peixinhos! E essa pena, senhor Visconde, francamente! Quero pena de pato com todos os seus patinhos!
O Visconde ergueu os olhos com jeito de perder a paciência. Emília sabia de cor e salteado que não tinha nada daquilo no Sítio.
— Marquesa, a senhora sabe perfeitamente que não temos nenhuma dessas coisas, e como já sei que sem essa parafernália a senhora não tem condições de escrever, é melhor que esqueçamos tudo isso.
— Esqueçamos, uma pinóia! Eu pensei que esse Sítio tinha evoluído um pouquinho, ora bolas! Vá lá, quem não tem cavalo, monta no boi. Mas um dia eu ainda hei de conseguir papel cor do céu, tinta cor do mar e pena de pato! — resmungou Emília.
O Visconde se preparou para começar a escrever. A boneca andava de um lado para o outro, pensativa. Finalmente começou a ditar:
— Escreva aí, senhor Visconde, bem no alto da folha: "Eu e Lobato", é o título, e o subtítulo é: "Memórias do autor, contadas pela sua mais famosa personagem, Emília, Marquesa de Rabicó".
O Visconde escreveu tudinho. Emília coçava a cabeça, não sabia como começar. Resolveu colocar um subsubtítulo. O sabugo achou aquilo estranhésimo e disse que nunca tinha ouvido falar que algum livro tivesse mais que um subtítulo.
— Você não entende nada, seu sabugo velho, cale a boca e escreva aí: "Aqui você vai saber como o autor teve a brilhante idéia de criar a maravilhosa boneca Emília, e também vai ter um parágrafo sobre a Campanha do Petróleo, porque a Dona Benta pediu".
O sábio nobre escreveu tudo, mas achava que Emília estava enrolando demais. Finalmente ela disse:
— Bem, agora, escreva aí: "Primeiro capítulo".
Emília coçou a cabecinha e voltou a andar para lá e para cá. Procurava um começo e não encontrava. Até que pediu arrego para o sabugo:
— Visconde, não tenho a mínima idéia de como começar. É muito difícil... E se a gente começasse pelo final? Assim: "... e aí, Monteiro Lobato, o maior escritor para crianças, morreu", e ponto final. Que tal?
— Mas, Marquesa, se no final ele morre, o começo só pode ser como todos os começos: ele nascendo!
— Excelente, senhor Visconde! Como é que eu não pensei nisso antes? Escreva aí: "Monteiro Lobato nasceu em... é... é... no Brasil"!
— Agora a senhora Marquesa está vendo por que precisa fazer uma pesquisa? A senhora não sabe nada da vida do seu autor!
— Não sei e tenho raiva de quem sabe! Estou achando essa parte do livro muito cacete! Quem quer saber onde e quando o Lobato nasceu? Vamos logo pra parte em que nós somos inventados, Visconde. O primeiro livro do Sítio, quando eu não sabia falar ainda e tive que tomar as pílulas falantes do Doutor Cara de Coruja Seca, e depois o segundo, e depois...
Nesse instante Emília vê pela janela Tia Nastácia indo em direção ao galinheiro, com um facão na mão. Na certa ela estava indo matar um frango para a janta. Era uma boa oportunidade de escapar do início do livro e ir encher a paciência da velha enquanto deixava o Visconde escrevendo por ela:
— Visconde, pensando melhor, acho que essa parte do livro, mais burocrática, mais chata, é você que deve escrever, sabia? Afinal, você é um sabugo científico, sabe pesquisar, se informar melhor que eu, uma boneca de macela, não é?
— Mas, Emília, assim eu vou novamente escrever para você?!
— É só esse começo, Visconde, eu já, já estou de volta. Vai pesquisando nos livros... depois eu vejo se está bom...
Emília sai correndo atrás da tia e deixa o Visconde a ver navios. Ele se conforma e começa a procurar os livros sobre Monteiro Lobato. São livros e mais livros. Todos contam tintim por tintim a vida de Lobato. O sabugo teve uma trabalheira: leu muito e anotou tudo o que achava importante. Passou horas e horas na biblioteca só pesquisando. Depois de muita leitura, começou a escrever, e quando já estava terminando a parte da infância do Lobato, Emília chegou afobada:
— Visconde! Visconde! Acuda, Visconde!
— Que foi, Emília? Parece que está fugindo de alguma coisa!
— E estou mesmo. Eu amolei tanto a velha que ela está querendo me esganar... mas deixa pra lá. E como vão as minhas memórias do Lobato? Já escreveu tudinho? O local, o dia, a hora, o minuto, como estava o tempo quando o Lobato nasceu?
O sabugo ficou irritado com o desprezo da boneca pela pesquisa que ele tinha feito; e já estava com os dedos cansados de escrever, o coitado:
— Já escrevi sim, senhora Marquesa. A hora, o local, a data, e mais algumas coisinhas, que eu, este sabugo velho, acho muito importante as pessoas ficarem sabendo.
— E eu? Já apareci?
— Claro que não, Emília! O Juca ainda mora em Taubaté, nem sonhava que ia virar escritor... ainda mais que ia inventar você.
— Juca? Que Juca?
— Pois é, senhora Marquesa, não pesquisou, não se informou e agora nem sabe que Juca era o apelido do Lobato quando era pequeno.
— E por que Juca?!
— Quem se chama José pode ter esse apelido, Emília. O nome do Lobato inteiro é José Bento Monteiro Lobato.
Emília resolveu encrencar com o tal Juca. Não via sentido em chamar Lobato de Juca:
— Não quero nem saber se o nome dele é José ou João! O negócio é que o Lobato tem é cara de Lobato. No máximo a gente pode chamar ele de Lobatinho na infância... É, Lobatinho vai ser o apelido dele na infância!
— Mas ninguém chamava ele de Lobatinho... chamava de Juca.
Emília foi ficando cada vez mais furibunda com aquele Juca e fez um escândalo tão grande que o Visconde teve que riscar todos os Jucas e mudar para Lobatinho:
— Lobatinho, senhor Visconde! As memórias do Lobato são minhas e eu escrevo o que eu quiser!
O Visconde começou a perceber que a pesquisa que tinha feito não ia adiantar nada. Pelo visto a Emília ia mudar tudo. Como é que uma bonequinha de macela podia anarquizar tanto com as coisas? Mas o que que ele podia fazer? Resolveu encher o peito e ler o que tinha escrito para ver no que ia dar:

José Renato Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de abril de 1882, na cidade de Taubaté, em São Paulo. Lobato foi o primeiro filho do casal José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato, filha de José Francisco Monteiro, rico fazendeiro da região, que ficou muito orgulhoso do neto. Seu avô recebeu o título de Barão de Tremembé em 1868 e o de Visconde de Tremembé em 1887. Lobato nasceu na casa dos pais, em Taubaté, no Largo da Estação.

Emília ficou muito espantada quando soube que o Lobato era neto de um Visconde de verdade. Ela, que adora esses títulos de nobreza e que casou com o Rabicó só porque Narizinho disse que ele era um Marquês, se assanhou toda com a novidade:
— Espera aí, Visconde, que eu não estou entendendo uma coisa: o avô do Lobato era Visconde? Visconde de verdade?
— Era sim. Era o Visconde de Tremembé, um fazendeiro muito rico e poderoso. Ganhou esse título de nobreza de Dom Pedro II.
— Mas por quê? Ele foi herói? Participou de alguma guerra? Lutou na batalha de Tremembebé?
— Batalha de Tremembebé? Claro que não, Emília, não houve batalha, nem guerra nenhuma. Tremembé é o nome de um lugarejo perto de Taubaté. Para receber esses títulos de nobreza a pessoa tinha que ser muito rica, como era o caso do avô do Lobato.
— Então... se o avô do Lobato era Visconde, o Lobato também era. E se o Lobato era Visconde eu devo ser Viscondessa. Já que fui inventada por ele, devo ser meio filha dele...
O Visconde estava meio tonto com as elucubrações da Emília, mas tentou responder à boneca:
— Não, Emília. O Lobato nunca foi Visconde. Essas coisas não passam de pai para filho, e além disso em 1889 o Brasil virou uma república, não tinha mais imperador, e sim presidente.
Emília não gostou: queria ser Viscondessa. Mas ela já era Marquesa, não tinha o que reclamar. O Visconde recomeçou a ler; e disse a primeira palavra bem contrariado:

Lobatinho teve uma infância bem parecida com a de Narizinho: com muito verde, muito pé de jabuticaba, ribeirão. Fez caçadas e pescarias como Pedrinho, adorava ler na biblioteca do avô, como o Visconde de Sabugosa e... era teimoso e mandão como a Emília.

O Visconde ficou esperando ouvir a maior bronca de Emília, mas ela só complementou:
— Teimoso, mandão e esperto como eu.

O menino tinha duas irmãs, Ester e Judite, que o adoravam e o mimavam como a mãe, Dona Olímpia. Por isso, desde pequeno ele reinava absoluto. Chegou a dizer uma vez: "Sempre fui tirânico. Eu sempre estava certo. Isso de erro era com os outros". Lobato só obedecia ao pai, que era severo toda a vida. O avô também o mimava, pois ele era o único neto homem e por isso iria realizar todos os seus sonhos.

Emília não entendeu essa parte:
— Ué, por que as netas não podiam realizar os sonhos dele?
— É que naquela época as mulheres ficavam dentro de casa, não estudavam nem trabalhavam. Por isso os pais e avôs ficavam querendo filhos e netos homens, para trabalharem como eles.
— Que época mais boba, Visconde. Se eu tivesse vivido nesse tempo mandava todos os homens catarem coquinho e ia fazer o que me desse na telha.
O Visconde riu da Emília, e disse que as coisas não eram nada fáceis para as mulheres daquele tempo, e que ainda hoje muitas ganham menos que os homens só porque são mulheres. Emília achou um absurdo aquela história. O Visconde retomou a leitura, antes que a boneca se exaltasse mais ainda:

Lobatinho gostava muito de ler e vivia na biblioteca do avô Visconde. Naquela época não havia muitos livros para crianças no Brasil. Então, os poucos livros que existiam, ele lia e relia várias vezes, como “Robinson Crusoé, O Menino Verde” e “João Felpudo”. O menino adorava ler para suas irmãs menores e para os filhos dos empregados.

E Emília foi logo perguntando:
— Mas por que que não tinha outros livros pra ele ler? Os escritores não sabiam escrever nessa época? — provocou.
— Não, Emília, é que como no Brasil não existiam editoras, a grande maioria dos livros era feita na Europa, então era muito caro e complicado. E ninguém ia se preocupar com livro para criança. Livro era uma coisa da elite. Só as pessoas ricas tinham livros e bibliotecas, como o avô do Lobato.
— Puxa, que sorte a do Lobato de ter um avô Visconde, fazendeiro e ainda por cima cheio de livros!
— Sorte a nossa. Porque assim, tendo uma infância cheia de livros, se divertindo e aprendendo tanto com os livros, o Lobato notou que todo mundo, principalmente as crianças, tinham que ler, e por isso em 1919 ele fundou uma editora: a Monteiro Lobato & Cia.
— Espera aí, Visconde, você estava na infância do Lobatinho e agora ele já está “afundando” editora?
— Fundando, Emília. Em todo caso você tem razão, acho que me adiantei um pouquinho. Mas vamos lá, deixa eu continuar a ler:

Além dos livros, Lobatinho adorava caçadas e pescarias. Quando tinha onze anos, ganhou uma carabina Flaubert, mas um dia acertou um tiro na caixa-d'água da ducha que o pai tinha mandado fazer no jardim; quando o pai foi tomar banho, e viu que não tinha água, adeus, carabina. Lobatinho, suas irmãs e a meninada de Taubaté gostavam muito de brincar de bonecos. Só que não eram bonecos comprados em lojas; eles faziam de um chuchu ou uma batata e quatro palitos tudo o que se possa imaginar: um porquinho, um cavalo... E um sabugo de milho, então?... Era tudo o que uma criança precisava para inventar um mundo à parte. Os bonecos de sabugo eram e serão sempre os melhores brinquedos.

Nesse instante Emília danou:
— Que história é essa, senhor Visconde? "Os bonecos de sabugo eram e serão sempre os melhores brinquedos"? Uma pinóia! E as bonecas de pano? As bonecas de macela e olhos de retrós, hein?!
O Visconde quase ia dizer que ninguém falava em bonecas de pano nos livros em que ele pesquisou, mas como viu que isso não ia adiantar nada, foi logo tratando de cortar a história dos sabugos de milho e escrever:

Os mais amados brinquedos das crianças daquele tempo e das de hoje são as bonecas de pano feitas de macela e olhos de retrós, iguais à Emília, sem tirar nem pôr:

Emília se acalmou e mandou que ele prosseguisse na leitura.

O pai de Lobatinho tinha uma fazenda e uma casa na cidade, e de vez em quando por lá aparecia a maior diversão da meninada daquela época: o circo. Era um acontecimento a chegada do circo no interior. As crianças vibravam de alegria com o palhaço, o preferido de Lobatinho, que rolava de rir com qualquer cambalhota. Mas a grande atração do circo eram os cavalinhos ensinados.

Emília deu um salto de alegria:
— “O círculo de escavalinhos”!
— Circo de cavalinhos, Emília!
— Pois é, mas isso ele colocou no “Reinações de Narizinho”. Fui eu que dei a idéia de fazer o circo no Sítio, lembra?
— Lembro, mas agora posso continuar? Se não, a gente não vai acabar essas memórias nunca.
Emília não deu a menor bola para a pressa do Visconde e continuou de torneirinha aberta:
— Mas, Visconde, uma coisa que eu estou notando é que muitas histórias da infância do Lobato ele colocou no Sítio. Olha só: você é Visconde e adora livros que nem o avô dele; ele morava numa fazenda, que nem a gente aqui no Sítio; agora, o “círculo de escavalinhos”... Será que desde pequeno ele já imaginava que ia escrever essas histórias?
— Pois é... isso é mesmo interessante. Mas pelo que eu li, quando ele era pequeno nem sonhava em ser escritor, porque o que ele gostava mesmo era de pintar.
— Pintar? Ele queria ser pintor?
— Queria muito. Mas quando ele foi fazer a Escola de Belas-Artes o avô não deixou, mandou ele fazer Direito.
— Fazer direito o quê?
— Fazer a Faculdade de Direito, Emília. O avô queria que ele fosse advogado, bacharel, juiz...
— Mas que avô Visconde mais mandão, hein?! E os pais dele? Não falavam nada?
De repente o Visconde ficou triste. Pegou um lencinho, enxugou algumas lágrimas e disse:
— Emília, o caso é que... os pais do Lobato morreram cedo... ele era um adolescente... e aí quem cuidava dele era o avô.
— E a avó dele, a Dona Viscondessa?
O Visconde se recompôs:
— Essa história é meio complicada, Emília... É que a avó do Lobato, a Dona Anacleta, não era mulher do Visconde: só teve filhos com ele.
— Ah... então o Visconde se separou da Viscondessa e casou com a avó do Lobato!
— Não, Emília! Ninguém se separava naquela época! O Visconde teve dois filhos com a Dona Anacleta e mais tarde se casou com a Viscondessa, Dona Maria Belmira de França. Foi um casamento de conveniência, muito comum naquela época. A Viscondessa concordou em criar os filhos que o Visconde teve antes de se casar.
Emília não entendeu muito bem aquela história e resolveu encrencar:
— Casamento de conveniência?!
— É quando as famílias decidem o casamento e às vezes os noivos nem se conhecem. Antigamente isso era muito comum. As famílias tratavam o casamento como um negócio. Mas o Visconde, após o casamento, não teve mais nenhuma aventura amorosa, por respeito a Dona Belmira.
— Puxa, e a Dona Benta vive dizendo que antigamente o mundo era mais romântico e coisa e tal, pois pra mim essa época era uma bela porcaria de época: mulher não podia trabalhar, nem estudar, e ainda tinha que se casar com um homem que nunca tinha visto na vida!
O Visconde achou melhor mudar de assunto logo, mas antes disse que a Dona Anacleta era muito querida do Lobato e que ele, na infância, não entendia o fato de a avó não ser a mulher do avô, mas isso não diminuía o amor que sentia pelos dois. E mais uma vez retomou a leitura:

Lobatinho era um menino que fazia muitas travessuras, e quem sofria eram suas irmãs menores. Certa vez, na fazenda, um cachorro chamado Blondel, muito querido das crianças, ficou com raiva e o pai teve que matá-lo. Enterraram-no no pomar perto de uma laranjeira. Lobatinho, mesmo triste com a morte de Blondel, aprontou uma das suas. Como ele adorava aquele pé de laranja e tinha até ciúmes de quem chegava perto dele, teve a idéia de dizer às irmãs que quem chupasse as laranjas daquela árvore iria enlouquecer que nem o cachorro. As duas se apavoraram tanto que nem se aproximaram mais daquele pomar. Mas, um dia, Ester e Judite foram encontrar o irmão exatamente ali... se deliciando com as laranjas. Ficaram furiosas e foram correndo contar para Dona Olímpia.

Emília interrompeu de novo:
— E que é que a Dona Olímpia fez?
— Ah, não sei, Emília... deve ter dado uma bronca...
— Ela deve ter dito bem assim: "Bem feito pra elas, meu Lobatinho, quem manda serem tão bobinhas?".
— Emília! Coitadas da Ester e da Judite, elas eram pequenas, só isso...
— Eu também sou pequena e não ia cair numa dessas.
O Visconde resolveu não discutir e voltou a ler:

Uma outra vez Lobatinho resolveu mudar de nome. E tudo por causa de uma bengala. O que aconteceu foi o seguinte: ele reparou que na bengala do pai, de ouro todo granulado, que ele achava linda, estavam gravadas as iniciais JAML. O garoto ficava danado com aquilo: "Esse diabo do B", pensava ele. Então, simplesmente mudou de nome: "De agora em diante, meu nome é José Bento Monteiro Lobato, e não José Renato Monteiro Lobato". Outra razão para Lobato ter mudado de nome foi o fato de Renato rimar com rato; ele pensava: "Um dia ainda me botam um apelido... então eu mudo de nome logo e não vou ter mais problemas".

— Ah! Essa foi boa, hein, Visconde? Tem mais dessas travessuras do Lobatinho?
— Ihhh... Tem um bocado, Emília. O Juca, quer dizer, o Lobatinho aprontava:

Certa tarde, Dona Olímpia recebeu visitas para um papinho e um lanchinho, e a coisa que Lobatinho mais odiava era visita chata. Vendo que Generosa, uma ex-escrava e amiga da Judite e da Ester, estava preparando um suco de abacaxi, porque o de limão tinha ficado muito azedo para servir para as visitas, ele a convenceu de trocar os sucos: servir o de limão em vez do de abacaxi. E, pelo buraco da fechadura, eles ficaram olhando as caretas horríveis que as visitas faziam, porque o suco estava muito azedo mesmo. Quando Dona Olímpia percebeu o que estava acontecendo, deu uma bronca nos dois e pôs os pestinhas de castigo.

— Ah! Mas deve ter valido a pena! Bem que eu queria estar lá pra ver as caretas das visitas. Conta mais, Visconde!
— Deixa ver o que eu anotei de travessura que ele fez. Ah, veja só esta:

Num outro dia, Ester e Judite ganharam uma boneca nova e puseram nela o nome de Nhá Cota. As duas queriam batizar a boneca e então chamaram Lobatinho para ser o padre. Generosa preparou uma mesa linda de doces e guloseimas para depois da cerimônia. Lobatinho fez tudo como manda o figurino, só que com uma pressa danada: molhou a cabeça da boneca, rezou uma ave-maria, um padre-nosso, felicitou as mães, as madrinhas e saiu correndo. Enquanto as mães cumprimentavam os convidados na maior calma, o endiabrado do padre, quer dizer, do Lobatinho, tratava de comer todos os doces da festa! Depois de encher a pança teve a cara-de-pau de voltar como se não tivesse feito coisa alguma. E quando as meninas viram que os doces tinham sido comidos, foi ele mesmo quem disse: "Deve ter sido arte de algum cachorro da fazenda!". E ninguém desconfiou de nada!

— Ah! Dessa eu não gostei, Visconde! Lembrei do meu casamento horrível com o Rabicó: depois do casório ele foi correndo comer os doces que Narizinho tinha comprado. Que droga eu ter casado com aquele porco! Tomara que ele morra logo, pra Narizinho me casar com um príncipe!
O Visconde resolveu continuar a leitura para ver se Emília se esquecia dessa parte infeliz de sua vida:

Quem lhe ensinou as primeiras letras foi a mãe, Dona Olímpia. Lobatinho tinha quatro ou cinco anos. Aos seis já escrevia bilhetinhos, mas sua mania era mesmo o desenho, a pintura... Por isso, todo mundo dizia: "Esse menino, quando crescer, vai ser pintor".
Uma das coisas curiosas da infância de Lobato, e que ele recordava bem, foi seu encontro com Dom Pedro II, o imperador do Brasil. Sua lembrança era de ter achado aquela barba muito grande e também de ter ficado impressionado com a vozinha fina que ele tinha.

De repente Emília se levantou da cadeira toda assanhada e abriu a torneirinha de asneiras, deixando o Visconde perplexo:
— Eu já sei de tudo, senhor Visconde! Pode começar a escrever o próximo capítulo!
O sabugo não entendeu nada, mas não teve nem tempo de perguntar. Emília não parava:
— O próximo capítulo é: "De como Lobatinho cortou a barba de Dom Pedro II"!
— Mas, Emília, o Lobato não cortou barba nenhuma! De onde você tirou essa história maluca?
— Da minha cabeça, senhor Visconde. Gostaria de lembrá-lo de que estas memórias são minhas, e por isso escrevo o que eu quiser, não tenho que dar satisfação pra ninguém!
O Visconde ficou furioso. Ele já tinha escrito tudo e a danada da boneca só fazia mandar e desmandar, e agora queria inventar uma história sem pé nem cabeça, e sem barba principalmente:
— Pois bem, Emília. Se as memórias são suas, então escreva-as, que eu já perdi toda a paciência.
Emília nem se esquentou. A boneca era mesmo uma diaba:
— Pode ir, senhor Visconde. Agora não preciso de sabugos científicos por perto, agora o meu negócio é imaginação, e isso eu tenho de sobra.
O Visconde saiu magoado com a Marquesa, mas também não deu o braço a torcer, e disse:
— Pois fique com a sua maravilhosa imaginação, senhora Marquesa de Rabicó, que eu vou estudar a vida toda do Lobato e vou escrever as minhas memórias dele. E sabe qual vai ser o apelido dele na infância? Juca! E sabe qual vai ser o brinquedo que ele mais amava? Um sabugo de milho!
O Visconde bateu a porta da biblioteca, deixando Emília enfurecida:
— Visconde, seu traidor, volte aqui! Você não pode fazer isso! Essa idéia é minha! Seu ladrão de idéias! Ladrão de memórias!
Dona Benta, que notou o alvoroço no escritório, resolveu ir ver o que estava acontecendo. Encontrou Emília aos berros, difamando e insultando o Visconde.
— Que é isso, Emília? O que que aconteceu? Vocês estavam tão bem aqui, de repente essa gritaria...
— Dona Benta, lamento informá-la, mas existe um ladrão aqui no Sítio! Um ladrão muito horrível. A pior espécie de ladrão: um ladrão de idéias.
— Que história é essa de ladrão, Emília?
— O Visconde roubou minha idéia, vovó. Roubou bem roubado! Já deve estar terminando as memórias dele do Lobato.
— Emília, alguma você deve ter aprontado para o Visconde ter dito que ia fazer o livro sozinho. Tem certeza de que não magoou o pobre do sabugo?
— Eu só disse que não precisava mais dele, que ele podia ir embora.
— Que horror, Emília. Isso não se faz. Primeiro faz gato-sapato do coitado, depois diz que não precisa mais, como se ele fosse uma coisa qualquer.
— Mas, Dona Benta, o problema é que o Visconde quer fazer tudo certinho, tudo como está nos livros, e eu acho que tem que inventar, senão essas memórias ficam muito cacetes.
— Então você deve explicar isso para o Visconde, sem ficar mandando. Você fala o que pensa e ouve o que ele pensa também. E os dois juntos chegam a uma conclusão.
Emília não gostou muito daquela idéia de não poder ir mandando no Visconde. Esse negócio de discutir não era com ela, dava muito trabalho. Era melhor ir dando ordens e pronto. Mas mesmo assim resolveu procurar o Visconde.
— Veja lá o que você vai aprontar, Emília!
— Pode deixar, Dona Benta, eu me entendo com aquele sabugo velho.
O Visconde estava compenetrado, escrevendo e fazendo mais pesquisas. Emília chegou espevitada e como sempre gritando:
— Visconde, eu decidi dar mais uma chance pra você!
— Mais uma chance!? Fique sabendo, Emília, que eu não vou mais escrever para a senhora e não quero chance nenhuma.
Quando Emília ia dizer um monte de desaforos, lembrou dos conselhos de Dona Benta e de fazer aquele célebre ar de anjo de inocência:
— Visconde, parece até que você não me conhece. É claro que eu estava zombando da sua cara quando disse pra você ir embora. Todo mundo precisa de um sabugo sábio por perto, Visconde. Será que não dava pra você continuar a ser meu secretário?
O Visconde notou que Emília estava mentindo só para ele escrever as memórias. Mas a verdade é que ela estava mentindo tão bem que até parecia verdade. O sabugo resolveu aceitar as desculpas mentirosas, pois a boneca estava fazendo um esforço terrível para ser bem-educada:
— Está bem, Emília, eu volto a ser seu secretário, mas antes eu queria...
Emília voltou ao normal rapidinho e nem deixou o Visconde falar:
— Muito bem, vamos deixar de mas, mas, mas e vamos ao trabalho. Anote aí, senhor Visconde, o próximo capítulo é: "De como Lobatinho cortou a barba de Dom Pedro II".
— Mas, Emília, de novo essa história maluca?
A boneca notou que daquele mato não sairia coelho e resolveu ela mesma escrever a grande cena:

Lobatinho era o capeta em forma de menino, e quando viu o imperador pela primeira vez teve uma idéia dos diabos:
— Coitadinho do Dom Pedro II, ele anda tão na pindaíba que não pode nem ir ao barbeiro! Mas eu, que sou um bom menino, vou fazer esse favorzinho pra ele.
Numa noite, quando o imperador dormia a sono solto, Lobatinho se aproximou dele sorrateiro, com uma tesoura na mão, e tentou cortar a sua barba. Dom Pedro começou a sentir cócegas e acordou. Quando viu Lobatinho com a tesoura deu um grito, com aquela vozinha fina dele, e quase desmaiou de susto:
— Aaaaaahhhh! Socorram-me! Tem um menino querendo me matar!
— Não quero matar coisa nenhuma, eu quero é cortar essa sua barba! Não fica bem um imperador com uma barbona dessa!
Dom Pedro, não entendendo nada, completamente aparvalhado, começou a correr e a berrar dentro do quarto:
— Ahhhh! Socorram-me! Tem um menino querendo cortar a minha barba!
Lobatinho não quis nem saber, e não parava de correr atrás dele, disposto a cortar até o último fio de cabelo, digo, de barba. E como a voz de Dom Pedro era fininha como a de um ratinho, ninguém escutava os seus gritos. Até que o imperador conseguiu sair do quarto e foi bater na porta do Visconde de Tremembebé:
— Socorro! Socorro! Senhor Visconde! Acuda! Acuda! Tem alguém querendo cortar a minha barba!
Lobatinho fugiu correndo antes que o avô o visse e lhe desse uma surra. Dom Pedro, ainda trêmulo, contou a história pro Visconde, que ficou tiririca da vida:
— Mas isso só pode ser coisa do meu neto! Eu vou dar uma surra de chinelo naquele moleque! Lobatinho não vai conseguir sentar durante um mês!
O Visconde de Tremembebé foi tomar satisfações com Lobatinho, mas quando o viu dormindo feito um anjo não entendeu nada, e até se arrependeu de ter pensado que o neto queria ter cortado a barba de Dom Pedro. Achou que Dom Pedro é que estava ficando gagá e devia ter imaginado tudo aquilo. Quando foi falar com o imperador, este já tinha se pirulitado da fazenda com toda a sua comitiva, com medo de que o danado do neto do Visconde tentasse mais uma vez cortar sua linda e preciosa barba.

O Visconde, apatetado com a capacidade que Emília tinha de inventar tanta bobagem, nem conseguiu reagir. A única coisa que fez foi dizer que não era “Tremembebé” e sim Tremembé. E é claro que a nossa Marquesa não deu a mínima para aquela observação.
Emília estava toda afetada e resolveu que tinha que repousar um pouco.
— Visconde, eu já trabalhei demais por hoje. Sabe que esse negócio de inventar cansa? Acho que vou tirar uma soneca. E você faça alguma coisa, hein? Já, já estou de volta.
O sabugo continuava apatetado, mas quando se viu sozinho retomou suas pesquisas e anotações sobre a vida do Lobato. Ele já estava quase se conformando com as invenções da Emília. Mas era bom voltar à realidade logo, antes que a boneca retornasse com mais invencionices.
Depois de um bom tempo de leitura e anotações, o Visconde já havia escrito bastante. Emília, que tinha tirado sua soneca, voltou com o maior gás:
— E aí? Como vão minhas memórias? Já apareci?
O Visconde estava muito chateado, ou melhor, indignado com um acontecimento marcante na vida do Lobato:
— Emília, você não sabe da maior!
— Que que foi, Visconde? Conta logo!
— Lobatinho levou pau! Sabe em que matéria? Português! O pobre coitado lá em São Paulo, sozinho. Tinha saído de Taubaté feito um herói para ir estudar na capital e aconteceu isso. Foi reprovado injustamente, Emília. Foi uma grande decepção.
— Visconde, não tem problema nenhum. É só fazer como os poetas e tacar uma licença poética: "Lobatinho passou com louvor em todas as matérias, inclusive em português", e pronto.
— Não sei não, Emília. Porque na verdade foi uma injustiça com o pobrezinho. O que aconteceu foi o seguinte:

Aos treze anos foi sozinho para São Paulo prestar exames de admissão aos preparatórios para o ingresso no curso superior. Lobatinho se saiu bem nas provas, tanto as orais como as escritas, mas foi reprovado na oral de português. Todos achavam que aquilo só podia ser um engano terrível. Na verdade, foi uma grande injustiça. Lobatinho voltou para Taubaté disposto a se grudar nos livros. Teve aulas particulares, estudou, estudou, e no ano seguinte, 1896, passou com "plenamente" em tudo!

— Ah! Ele deve ter feito uma careta enorme para aqueles professores que tinham reprovado ele antes.
— É. Deve ter sentido um alívio, uma alegria quando passou... Só que em São Paulo começaram os tempos difíceis. Foi o fim da infância do menino Juca Lobatinho. A época de estudante em São Paulo também foi a época de tornar-se adulto: seu pai e sua mãe faleceram, e agora seu avô era quem mandava nele e nas irmãs. "O mundo tinha virado", ele pensava. Uma tristeza.
— Aí, para ficar bem alegrinho, ele resolveu ser autor de livros pra crianças e escreveu os livros do Sítio do Pica-Pau, não foi?
— Não, Emília, ainda não. Aliás, é bom a gente falar disso:

A escrita, como a leitura, sempre fez parte da vida de Lobatinho, que, quando estudante, costumava colaborar em jornais escolares. Ainda em Taubaté, ele fez um chamado H2O. Era totalmente diferente: uma página só e escrito à mão! O mesmo jornal era lido por todos os colegas!

— Eu não quero saber de porcaria de jornal nenhum, Visconde! E ainda mais de um tão pequeno, um exemplar de uma página só! Eu quero saber dos livros! Os milhares de livros que ele vendia e cujo personagem principal era eu!
— Então você não quer saber o que ele escrevia nesse jornal?
— Não! E tenho raiva de quem sabe!
— Tem certeza? Olha que você vai gostar.
— Está bom, eu vou fazer o favor de ouvir o que você escreveu. Pode ler, senhor Visconde de Sabugosa.

Também na escola Lobatinho aprontava. O H2O não falava de política, meteorologia, nem futebol. Seu jornal gozava os colegas. A cada número ele atacava uma turma com um monte de fofocas: "Fulaninho é mulherzinha!"; "Fulustreco tira meleca do nariz!". Era só provocação. O jornal era lido no pátio do colégio. Lobatinho dizia quem não ia ser atacado e estes faziam uma rodinha para protegê-lo dos que foram citados.

— Que tal, Emília? Essa não foi boa?
— A do suco azedo de limão da Generosa está ganhando disparado.
Emília só falou aquilo para atazanar a vida do sabugo. No fundo, tinha gostado de saber das travessuras literárias do Lobatinho. O Visconde continuou, meio desanimado, a sua leitura:

Lobato passou a adolescência estudando muito em São Paulo e passando as férias na fazenda. Escrevia e lia bastante. Queria ser escritor, pintor, enfim, um artista. Na hora da escolha da carreira, seu desejo foi vetado pelo avô. Naquela época os jovens de família nobre tinham que cursar a Faculdade de Direito. E Lobato não teve como enfrentar o avô. Em 1900, entrou na Faculdade do largo São Francisco. Aí estudou gente muito famosa, como Rui Barbosa e Castro Alves. A verdade é que Lobato pouco se interessava por leis e foi um aluno médio do curso. Mas fez grandes amizades, entre elas, Ricardo Gonçalves, Albino Camargo, Cândido Medeiros, Raul de Freitas, Tito Lívio Brasil e Godofredo Rangel, com quem se correspondeu durante quarenta anos.

— Ele ficou escrevendo cartas durante quarenta anos pra esse Gordoalfredo?! Aposto que Lobato achava que esse Gordoalfredo cheirava muito mal, por isso inventou de ficar escrevendo cartas pra ele!
— Godofredo, Emília! E eles se corresponderam durante quarenta anos porque cada um morava numa cidade, e eram muito amigos.
— E você acha que alguém está interessado nesse Gordoalfredo, Visconde? Ninguém está dando a mínima pras cartas que o Lobato escreveu ou deixou de escrever. As pessoas só querem é saber de mim. Euzinha aqui. Todo mundo deve estar se perguntando: "Quando é que o Lobato vai ter a idéia de escrever sobre o Sítio do Pica-Pau Amarelo, quando a Emília finalmente aparece?". Mas você fica enrolando o pessoal!
— Pois eu acho muito importante as pessoas saberem que o Lobato tinha um amigo como o Godofredo, porque as cartas que ele escreveu falam de todos os acontecimentos importantes da vida do Lobato, de todas as polêmicas em que ele se envolveu. Essas cartas falam inclusive de você!
— Falam de mim?! Oba! O que que ele diz?
— Ainda não, Emília. Vamos com calma. Ainda tem muita coisa antes do Sítio chegar.
Enquanto Emília dava um muxoxo, o Visconde retomou a leitura:

Essas cartas foram publicadas nos dois volumes de “A barca de Gleyre”. Lobato, nessas cartas, fala de tudo: seus problemas, suas leituras, sua preocupação com o Brasil, e em especial sua vontade de se dedicar totalmente à literatura.

— Oba! Afinal, chegamos ao ponto principal dessas memórias!
— Não, Emília, lamento informá-la.

Mas ele nem sonhava escrever para crianças nessa época. O jovem Lobato só sonhava em ser escritor. Aliás, não apenas ele como todos os seus amigos do Minarete.

— Minarete? Que que é isso?
— Minarete é uma torre pequena. E Lobato e seus amigos literatos foram morar num sobradinho que parecia um minarete.
— E o que eles faziam da vida?
— Faziam muitas coisas:

Lobato e seus amigos discutiam sobre literatura, filosofia, política, tudo, enfim. Eram rapazes que queriam mudar o mundo. Eles eram Jovens como o século XX, que estava começando, cheio de aventuras, de novidades; era muita mudança para aqueles rapazes. Achavam que o velho mundo estava todo errado e eles é que iriam consertar. Andavam pelas ruas de São Paulo sonhando com a fama. Naquele tempo São Paulo era bem menor. Tinha trezentos mil habitantes, trinta vezes menos que hoje. O bonde elétrico estava surgindo, os primeiros automóveis apareciam, o cinema era uma grande novidade. Não tinha nada a ver com a cidade de hoje, mas o estado já era o mais rico. Aqueles jovens só queriam saber da rua, dos teatros, dos cafés e das discussões. E por isso toda noite iam "fazer o Triângulo".

— Que história é essa de fazer o triângulo? Eles foram estudar geometria, por acaso?
— "Fazer o Triângulo" era uma expressão da época.

As ruas Quinze de Novembro, São Bento e Direita formavam um triângulo, e era nessas ruas que ficavam as melhores confeitarias — que tinham as suas próprias orquestras —, os cafés, as lojas mais bonitas. Eram ruas alegres, cheias de vida, e depois do jantar nada melhor que "fazer o Triângulo", isto é, passear por essas ruas. Mas o que eles adoravam mesmo era sentar a uma mesa do Café Guarani e discutir sobre tudo.

— E sobre o que mesmo que eles discutiam?
— Eles discutiam e escreviam sobre vários temas.

Política era um tema que empolgava a todos os jovens. Naquela época o socialismo, um sistema de governo que fervia no mundo, chegava à cabeça dos operários e jovens daqui. Lobato era um dos que defendiam uma sociedade sem classes e sem a miséria de muitos para a riqueza de poucos. Mas o que o jovem Lobato queria e sonhava o tempo inteiro era ser escritor, viver de literatura. Enquanto não realizavam seus sonhos, os rapazes formaram um grupo chamado Cenáculo, que pretendia mudar as leis do universo.

— Queriam mudar as leis do universo? Queriam acabar com a lei da gravidade?!
— Não, não era bem esse tipo de lei que eles queriam mudar. Eram as leis da etiqueta, que detestavam. Por isso ficou estabelecido que ninguém podia falar nenhum lugar-comum. O lema era: "Ódio mortal aos lugares-comuns". Isto é, ninguém podia dizer, por exemplo, "bom-dia!", "muito prazer!". Tinha até um fiscal que às vezes denunciava: "O fulustreco falou: $"Estimo muito conhecê-lo$"". Aí o fulustreco tinha que pagar uma rodada de cerveja, porque tinha falado um lugar-comum.
— Mas esse lema é meu! Eu sempre disse que esse negócio de "por favor", "com licença", "pois não" era uma perda de tempo! Dona Benta e Narizinho é que vivem falando essas asneirices.
— Não são asneirices, são um sinal de educação, Emília. Se as pessoas não se tratarem com educação não há diálogo, não há convivência, amor, amizade.
— Pra mim isso é uma grande baboseira. Tudo bem quando você gosta de uma pessoa tratar bem, mas quando não gosta, ficar falando "obrigada", "bom-dia", "como vai?" é uma hipocrisia! Eu bem que queria fazer parte desse grupo “Centauro”.
— O nome é Cenáculo, Emília. Cenáculo é um grupo de pessoas com as mesmas idéias.
— “Centauro! Centauro! Centauro”! E vamos lembrando, senhor Visconde, que as memórias do Lobato são minhas, por isso vá anotando um novo capítulo que acabei de inventar.
O Visconde notou que Emília ia abrir a torneirinha de asneiras de novo. Levantou os olhos e se resignou a escrever. Emília botou as mãos na cintura e começou a ditar:

“Lobato e seus amigos da turma do Centauro depois do jantar foram "fazer o Losango"“.

— Era o "Triângulo" que eles faziam.
— Quieto, Visconde! Você está tirando a minha concentração. Nesse capítulo fica sendo “Losango”, que é uma palavra mais engraçada que triângulo; aliás, todo mundo fala do triângulo, do retângulo, mas ninguém nunca lembra do coitado do losango.
O Visconde achou que Emília estava ficando maluca. Agora a boneca filosofava?
— Então, como eu ia dizendo, Lobato e seus amigos foram fazer o “Losango”.

Nessa noite a turma estava encapetada, e além de não poderem falar lugares-comuns também resolveram fazer má-criações horrorosas com as pessoas que passavam. Implicavam com todo mundo, não perdoavam ninguém:
— Olha, Lobato! — disse o Gordoalfredo. — Aquela dona com aquele chapéu! Parece uma perua!
Não deu outra: os rapazes do Centauro foram atrás da dona imitando peru:
— Glu-glu-glu-glu.
A dona não gostou nada daquela brincadeira e foi chamar um guarda. Quando eles viram que ia ter encrenca, fugiram correndo e entraram numa confeitaria entupida de gente. Lobato e o Gordoalfredo se meteram no meio da orquestra e se fingiram de músicos. O maestro não entendeu nada, mas depois pensou que eles eram os novos cantores contratados, e pediu pra eles cantarem. Pra não chamar a atenção da dona perua e do guarda, que tinham acabado de chegar à confeitaria, começaram a cantar bem baixinho, mas o maestro não gostou e pediu pra aumentarem o volume. Foi um horror: eles eram mais desafinados que os patos do Sítio. O pessoal da confeitaria vaiou, e a dona perua logo reconheceu os dois. Nisso, passou na sua frente um garçom com uma torta de creme na mão, e ela não teve dúvidas: apanhou a torta e atirou na cara do Lobato. Ele, que não era bobo nem nada, se abaixou e a torta foi parar na cara do maestro, que ficou danado da vida. A dona perua pediu desculpas, mas o maestro não quis nem saber: pegou um violino e jogou na cabeça dela. Lobato e Gordoalfredo saíram de fininho antes que sobrasse pra eles. Depois, foram pra outra confeitaria, às gargalhadas, lembrando da cara do maestro e da dona perua.

— Que tal, Visconde? Essa foi boa, hein?
— Acho que a Marquesa anda vendo muita comédia-pastelão.
— Eu acho que está ótimo. Foi melhor que a história do suco azedo.
O Visconde fez uma cara de "Deus, dai-me paciência" e, antes que começasse mais uma briga entre dois, resolveu continuar a sua leitura:

Os rapazes do Cenáculo, além de beber, declamar poesias até de madrugada pelas ruas, discutir nos bares, só sonhavam em escrever. Até que um dia seus sonhos foram realizados, como que por encanto.

— Não me diga que a fada-madrinha da Cinderela apareceu lá e fez uma mágica.
— Quase isso, Emília. O que aconteceu foi o seguinte:

Um amigo do Lobato, Benjamim Pinheiro, foi morar no interior paulista, em Pindamonhangaba.

— Que é isso, Visconde, agora deu pra falar palavrão?
— Pindamonhangaba ou, para facilitar, "Pinda", é uma cidade do interior do estado de São Paulo, Emília. Fica perto de Taubaté. Mas como eu ia dizendo:

Pinheiro resolveu se candidatar a prefeito da cidade, e para isso, além de dinheiro, precisava de um jornal.

— Já sei! E aí a turma do Lobato inteira se mudou pra “Pindagoiabada”?
— Pindamonhangaba, Emília. Não, eles não se mudaram coisa nenhuma. Eles escreviam tudo em São Paulo e mandavam para lá pelo correio.
— Mas como é que alguém faz um jornal de uma cidade morando noutra cidade?
— Pois é, Emília, e era um jornal em que você adoraria trabalhar.

O jornal chamava-se “Minarete” e servia só para atacar o prefeito, assim a oposição venceria as eleições seguintes. Benjamim Pinheiro mandava a pauta, isto é, os temas que eles tinham que abordar, sempre criticando o governo, para São Paulo, e pedia que falassem mal do prefeito por causa da grama nas ruas, que não estavam capinadas, ou porque a carne estava muito cara, e os rapazes arrasavam com o sujeito sem dó nem piedade.

— Realmente, eu iria adorar trabalhar nesse jornal — disse Emília, toda animadinha.

Outra coisa diferente nesse jornal era que ninguém se atrevia a assinar os artigos. Só usavam pseudônimos, isto é, nomes inventados. Lobato nem sabia quantos tinha. As pessoas de Pinda achavam que o jornal era feito por um batalhão, com um nome mais estranho que o outro: Lobatoievski, Pascalon, o Engraçado, Rui d'Hã, Hélio Bruma, Josben, Antão de Vasconcelos, Oscarino, e milhares de outros.

— Gostei dessa idéia, Visconde! No meu jornal também vou inventar pseudônimos. Deixa eu ver, que tal: Emiliaievski Marquesovski de Rabicovski e Viscondeievski de Sabugovski?
— Não sei, Emília. Algo me diz que vão notar que somos nós.
— Será?
Enquanto Emília ficava lá pensando no seu jornal e nos pseudônimos, o Visconde continuou a leitura:

Além dos artigos, eles tinham que fazer a seção de humor, variedades, e os anúncios. Várias vezes inventaram anúncios malucos, como este, por exemplo: "Cadeiras Furtadas — Desapareceram da calçada da casa de José Bento, no largo do Passeio, há dias, quatro cadeiras de jacarandá envernizadas de preto e tecidas de palhinha. Quem levá-las ao seu dono, ou der notícias, será gratificado".

— Boa idéia! Também podemos inventar anúncios, hein, Visconde? Podíamos anunciar que o Sítio do Pica-Pau Amarelo está à venda. Quando os compradores chegassem de láááá... bem de looooonge... após dias e dias de viagem em cima de lombo de burro, para enfim comprarem o Sítio, nós vamos dizer com a cara mais inocentinha do mundo que o Sítio nunca esteve à venda e que tudo não passou de um terríííível engano! E depois vamos cair na gargalhada!
Emília ria da própria história, mas o Visconde não achava graça nenhuma.
— Você não tem coração mesmo, não é, Emília?
— Tenho sim! Tanto tenho que depois eu iria pedir pra Tia Nastácia servir bolinhos e pipoca pra eles não ficarem assim tão a ver navios.
— Bom, pelo menos isso. Vamos voltar às memórias agora?
Emília só queria falar e pensar no jornal que ia fazer no Sítio.
— Visconde, o jornal já tem nome e tudo: "O Jornal da Emília".
— Não seria melhor: "O Jornal do Sítio do Pica-Pau Amarelo"?
— Não, Visconde. Muito grande. Estou preferindo o primeiro nome.
Visconde ergueu os olhinhos para o teto e retomou a leitura:

Eles também publicavam poesias e contos no “Minarete”. Lobato começou a escrever um romance completamente absurdo e seus capítulos saíam no jornal. O romance se chamava "Lambe-Feras, uma maluquice literária". Os habitantes de Pinda nunca iriam entender que um autor escrevesse num de seus capítulos o que ele escreveu: "Capítulo XXXV: suprimido a pedido do bom senso". Eram artigos alucinados, que ninguém na cidade entendia. Era pura diversão para os rapazes de São Paulo: redigiam artigos inventando cidades, misturando literatura com realidade; era uma farra. E o mais engraçado é que o tal amigo de Lobato, o Benjamim Pinheiro, ganhou a eleição.

— Depois você reclama que eu invento muito. Essa turma do Lobato inventava notícia, anúncio e ainda falava mal do prefeito, e você nem reclama!
— É diferente, Emília. Quando a gente escreve as memórias de alguém tem que ser fiel à vida dessa pessoa, e não sair inventando.
— E num jornal? A gente pode sair inventando?
— Não, mas é que eles eram jovens do começo do século querendo fazer farra.
— E eu sou uma jovem e linda boneca deste século querendo fazer uma farrissíssima!
— Por falar em farra, lembrei da chegada do Lobato em Taubaté.

Quando Lobato voltou da capital, formado, trazendo o diploma, foi recebido com honras de herói: era um "doutor". Teve banda de música, foguetes, discurso, bebida para todo mundo. Taubaté estava em festa, menos Lobato, que não estava gostando nada daquilo.

— Puxa, foi recebido com banda de música, foguetes, e não gostou?
— Na verdade, ele sabia que aquilo tudo não era para ele, ou melhor, ele sabia que aquilo era para o "neto do Visconde". Aqueles discursos inflamados, aquela alegria toda eram só para impressionar o Visconde, que era muito prestigiado na cidade.
— Mesmo assim eu ficaria feliz da vida se eu fosse recebida com banda de música e foguetes numa cidade.
— Mesmo sendo tudo falso? Era só porque ele era o neto do Visconde, Emília.
— Eu ia pular de alegria, não ia nem querer saber se estavam querendo bajular o Visconde. Eu ia aproveitar.
— Pois é. E foi o que o Lobato fez, da maneira dele.
— Mandou todo mundo ir plantar bananeira?
— Quase isso.

Respondeu dizendo que não queria homenagens, que aquele diploma não valia nada porque ali estava um bacharel formado mais pela boêmia do Triângulo do que por outra coisa. Disse ainda que um novo advogado é mais uma filoxera social que sai do casulo.

— Puxa vida! O avô Visconde deve ter ficado danado com o neto, porque ele xingou todo mundo no meio da festa?
— Ele não xingou ninguém, Emília. Filoxera não é xingamento, é um inseto que produz uma doença nas vinhas. É uma praga. Ele estava sendo irônico com a profissão de advogado, dizendo que um novo advogado era mais uma praga para a sociedade.
— Ele não xingou diretamente, mas que xingou, xingou. Se ele disse que ele era uma doença, aquele povo todo lá, fazendo festa pra uma doença, era no mínimo um povo maluco. Porque ninguém que eu conheça solta fogos ou manda vir banda de música quando chega uma virose ou uma epidemia.
O Visconde ficou bobo com a Emília: não é que a danada sabia de tudo!
— É, Emília, você tem razão, mas ninguém entendeu o discurso do Lobato: entrou por um ouvido e saiu pelo outro. As pessoas notaram que ele não estava gostando muito, mas fingiram que estava tudo bem e continuaram bebendo cerveja felizes da vida. E no final fizeram questão de cumprimentar o "Doutor Lobato".
— Eu também quero ser chamada de Doutora Emília.
— Mas eu já disse que era tudo falso. Tudo lugar comum, que você disse que odeia.
— Não, espera aí, Visconde. Eu não falo lugar-comum pra ninguém, mas se alguém quiser me paparicar vou adorar!
— Mesmo que não seja verdade?! Mesmo que a pessoa seja falsa?
— Visconde, o que é a verdade? A verdade é uma mentira bem contada, ela não existe. Por isso é melhor viver de mentiras do que procurar uma coisa que não existe!
— Que o Lobato não ouça você, Emília! Um homem que lutou a vida inteira pela verdade, contra a hipocrisia, e vem você e diz que aceita a mentira dos outros.
— Eu não aceito, eu aproveito a mentira se for boa pra mim, ora bolas.
O Visconde resolveu encerrar a discussão, antes que se irritasse mais. Meio aborrecido, voltou a ler o texto:

Aquela fase de pós-formado foi muito difícil para Lobato. Ele estava acostumado à vida urbana de São Paulo, à rapidez das coisas, e não àquela vagareza de Taubaté. Tinha saudade dos amigos, das conversas e da agitação da capital. Sentia-se como um "exilado" em Taubaté.

— Taubaté pra ele era como um asilo?
— Devia ser, para um rapaz de vinte e dois anos. Mas eu disse “exilado”.

Diz que sentia que estava se "burrificando" e "embolorando", que não tinha nenhuma idéia incrível como tinha na capital. Por isso passava os dias lendo e escrevendo. Continuava com o jornal “Minarete”, de Pindamonhangaba, e nessa época começou a escrever com o Godofredo Rangel uma novela daquelas bem malucas, chamada “O queijo-de-minas ou A história de um nó cego”. A idéia deles era criar uma história em que os figurantes seriam assassinados, mas Lobato resolveu matar logo de saída um personagem principal que o Rangel tinha inventado. O Rangel não pestanejou: matou um dos protagonistas de Lobato. E aí foi uma matança geral. No final, só os autores sobreviveram.

— Puxa, que tragédia grega!
— Mas era tudo brincadeira, Emília. Imagine a cara das pessoas lendo uma história que de repente não tem mais personagem.
— Bom, só espero que o Lobato não tenha inventado de sair matando o pessoal do Sítio.
— Não, agora ele só queria saber de poesia. Lobato estava apaixonado. Depois que Purezinha foi para Taubaté, ele vivia nas nuvens. Só pensava em Maria da Pureza.
— Que nome esquisito!
— Era um nome da época. Os nomes também são de época, Emília.
— Estou dizendo que essa época não era muito boa de se viver.
— Aposto que hoje poucas crianças se chamam Emília. Todo mundo acha o seu nome esquisito.
— Que achem, não tenho nada com isso — respondeu Emília, de nariz em pé.

No começo de 1906, Maria da Pureza Gouvêa Natividade foi passar as férias em Taubaté com o avô, Doutor Quirino. Lobato se apaixonou: só pensava em Purezinha. Começou a fazer poesias de amor e a publicá-las no “Jornal de Taubaté”. Doutor Quirino tinha sido professor de Lobato, que aproveitava e ia jogar xadrez com ele toda tarde. O momento mais esperado era quando Purezinha entrava na sala oferecendo café com bolinhos. Lobato só tinha olhos para ela.

— E eu só tenho olhos pros bolinhos. Você pode ficar com o café, Visconde.

Ele já tinha tomado a decisão: ia casar com Purezinha. Mesmo que o avô Visconde não consentisse. Mas ainda não tinha arranjado um emprego e vivia às custas do avô. Até que, em 1907, Lobato ganhou a promotoria de Areias.

— Que bicho é esse?
— Ele foi nomeado para ser promotor, que é aquele que promove as causas, os processos judiciários. Ele faz as coisas andarem, entendeu?
— Entendi, senhor Visconde. Eu sou uma boneca de macela, mas não sou burra. E Areias, onde fica?

Areias é uma cidade do interior paulista que na época estava completamente abandonada. Tinha parado no tempo. Depois do período do café, das grandes fazendas, ainda não tinha se reerguido. As pessoas iam embora e a cidade ficava cada vez mais morta. Lobato tinha medo de "embolorar" em Areias. Como o serviço era pouco, ele lia e escrevia muito. Mas na opinião dele o lugar era muito importante para o artista: "Se o meio é pífio, o artista é pífio, e a obra de arte é pífia". Para ele, nem Shakespeare tiraria um drama de Areias. Não havia ânimo para nada. Lobato, então, resolve tentar convencer Purezinha a se casar com ele e ir morar em Areias, o que aconteceu em 1908.

— Puxa, que maldade com a Purezinha. Levar a pobre coitada para essa cidade tão horrível onde não acontece nada...
— Mas é que eles estavam apaixonados, Emília. E Purezinha iria fazer companhia a ele, ajudá-lo nesse momento tão difícil.
— Se o meu príncipe encantado fosse morar em Areias eu iria dizer “tchauzinho” pra ele sem pestanejar. Talvez mandasse um cartão de Natal ou de Ano-Bom.
— Mas, Emília, o Lobato precisava trabalhar e foi nomeado promotor lá em Areias. Ele não podia bater o pé e dizer: "Não, para lá eu não vou!". Ele tinha que trabalhar.
— E por que não virou logo escritor de livros para crianças?!
— Calma, Emília, antes de ser escritor, Lobato foi fazendeiro, editor de livros... Ah, o Lobato fez tanta coisa que você nem imagina.
— Ah, assim não há leitor que agüente essas memórias, Visconde. Quanta enrolação! Editor de livros ainda vá lá, mas fazendeiro? Ele foi fazendeiro do ar por acaso?
— Pode ser, Emília. Mas na verdade Lobato quis ser um fazendeiro de verdade e ficar muito rico para assim poder escrever seus livros.

Lobato e Purezinha moraram um tempo em Areias já casados. Aí, além de ser promotor, ele colaborou em jornais, continuou a pintar, trabalhou com carpintaria, fez traduções, escreveu contos e leu muitos livros. Também nessa época nasceram os seus dois primeiros filhos, Martha e Edgar.

— Filhos! Que chatice! Eu nunca vou ter filhos. Ficar gorda durante nove meses, depois não dormir com o choro do neném, que nem sabe falar. Os bebês já poderiam nascer falando, porque aí em vez de chorar eles simplesmente diriam: "Estou com fome"; "Fiz pipi". Você não acha que ia ser uma mão na roda, Visconde?
— Que idéia, Emília! O choro do bebê é o jeito dele de se comunicar. Demora um pouco, mas toda mãe acaba entendendo o que quer dizer cada choro. E depois vem a emoção da primeira palavra, da primeira frase.
— Uma chatice, isso sim!
— Você é uma grande mentirosa, Emília. Quem é que ficou toda derretida quando o anjinho da asa quebrada apareceu aqui no Sítio? Você explicava tudo para ele e não deixava ninguém chegar perto. Exatamente como uma mãe.
— É? Não me lembro disso não, senhor Visconde — disse Emília, disfarçando.
— Bom, mas onde estávamos mesmo?
— O Lobato teve a brilhante idéia de ser fazendeiro do ar em Areias.
— Não, Emília! Não confunda as coisas. Não foi em Areias que ele virou fazendeiro. Lá ele teve a triste notícia do falecimento do seu avô, e...
— Ah, então o avô Visconde bateu as botas e o Lobato foi tomar o posto dele!
— O Lobato dividiu a herança com as irmãs, e a parte que coube a ele foi a Fazenda São José do Buquira. Em vez de vender a fazenda, ele ficou animado e resolveu ser fazendeiro. É muito normal uma pessoa que recebe uma fazenda querer ser fazendeiro.
— Mas não o Lobato, que nunca pensou em ser fazendeiro e, como você tinha dito, só sonhava em ser escritor e voltar pra capital.
— É, Emília, mas, como eu também já disse, ele achava que podia ficar muito rico na fazenda para depois comprar uma casa em São Paulo e viver escrevendo os seus contos, entendeu? E na verdade ele ficou muito entusiasmado com a fazenda.
— Estou achando que isso não vai dar muito certo.

— Mais ou menos, Emília. O que aconteceu foi o seguinte:

Com a morte do avô, Lobato recebeu de herança a Fazenda São José do Buquira — na língua dos índios, buquira significa "rio dos pássaros". Era uma propriedade de dois mil alqueires, terra que não acabava mais. A casa da fazenda era um casarão de oitenta janelas e portas onde poderiam morar mais de cinco famílias. A natureza lá era exuberante: matas, rios, cachoeiras. Lobato e a família despertavam com o canto dos pássaros. Ele montava sua égua moura pela manhã e ia tomar um belo banho de cachoeira. E foi assim, encantado pelo lugar, que ele decidiu conciliar as suas paixões: a de escritor e a mais recente, de fazendeiro. Como escritor, foi nessa época que ele criou quase todos os contos do seu primeiro livro; como fazendeiro, comprou marrecos de Pequim e patos indígenas, e plantou mais feijão, arroz, café, milho. Estava convencido de que, se não tinha dado certo como escritor, podia ser um grande fazendeiro. Essa era uma característica do Lobato: mal começava a fazer uma coisa, já queria ser o melhor. Queria que a fazenda fosse a primeira do município, só que para ver o resultado de uma plantação é preciso ter paciência. Exatamente o que Lobato não tinha.

— E aí ele desistiu de tudo, vendeu a fazenda e foi pra São Paulo.
— Não, primeiro ele inventou o Jeca Tatu, o personagem mais famoso do Lobato.
Emília olhou para o Visconde com aquele olhar fuzilante que deixou o sabugo tremendo feito vara verde.
— Que história é essa, senhor Visconde? Eu é que sou a personagem mais importante da obra do Lobato. Sou eu, seu sabugo velho! Está querendo arruinar as minhas memórias, é?!
— Não, Emília... o que eu quero dizer é que... o Jeca Tatu foi o primeiro personagem do Lobato que ficou famoso no Brasil inteiro. É isso. Você ainda não apareceu na história! Antes, o Lobato teve a idéia do Jeca, que, pensando bem, não ficou tão famoso assim — disse o Visconde, tentando acalmar a fera.
— E quem é esse tal de “Jaca” Tatu?
— Jeca Tatu foi a figura que Lobato inventou para representar o homem do interior, ignorante e doente. O Lobato se interessou muito pela linguagem e pela cultura do caboclo.
— Aposto que ninguém está interessado nessa parte da vida dele. Então, vamos logo pra parte que ele vende o raio dessa fazenda e vai ser o famoso escritor de livros infantis lá em São Paulo!
— Mas, Emília, a gente não pode pular pedaços da vida do Lobato. Essa parte é importante porque foi exatamente por causa do sucesso do Jeca que ele decidiu ser escritor, e um dos escritores mais preocupados com os problemas do país. Não demorou muito, ele vendeu a fazenda, se tornou um grande escritor conhecido em todo o Brasil e...
— Está bom, vá lá! Mas seja breve, senhor Visconde. Aposto que os leitores já estão bocejando com essa história.
— Bom, o negócio foi o seguinte:

No ano de 1914, também o Brasil passou a sofrer os problemas da Primeira Guerra Mundial. As dificuldades econômicas eram grandes, porque as exportações começaram a diminuir. Quando Lobato notou que suas terras estavam cansadas e não produziam, quis subir pelas paredes. E ficou mais danado ainda ao ver que os próprios caboclos, os homens do campo, é que cansavam e maltratavam a terra.

— Mas o que que esse caboclo fazia com a terra pra ela ficar cansada? Botava ela pra correr, por acaso?
— Não, Emília, que idéia! Ele fazia uma coisa que até hoje atrapalha a agricultura. Ele queimava a terra, botava fogo na mata, achando que assim a terra iria ficar boa para produzir. São as famosas queimadas. Só que isso é uma ignorância, isso só faz matar a terra.

Lobato, então, ficou com muita raiva desses caboclos, porque acabou perdendo muito dinheiro. Tinha comprado máquinas modernas e importado animais. Mas, na época, ele não percebeu que a culpa não era dos trabalhadores.

— Como não era deles? Eles punham fogo na terra, acabavam com a terra e a culpa não era deles?
— O problema, Emília, é que esses caboclos não tinham estudo, eram ignorantes. Eles não tinham informação nenhuma de nada. O governo, que tinha obrigação de ensinar as coisas, tapava o sol com a peneira. Fingia que não via para receber os votos deles nas eleições seguintes.
— Não sei disso não, senhor Visconde. Por acaso foi o governo que mandou tacar fogo na mata? Estou achando que esse caboclo é meio pancada.
— Pois é, e o Lobato também achava. E além de ficar pensando em como se livrar daquele "piolho da terra", ele achava que podia fazer boas histórias com aquela figura, com aquele personagem.

Outra coisa que o irritava muito era o fato de a nossa literatura enaltecer o homem do campo. Todos os autores da época adoravam falar que o caboclo era forte, valente, íntegro, desbravador, impetuoso. E, na fazenda, o que Lobato via era aquele homem fraco, doente, molenga, que só sabia pôr fogo na mata. Lobato pensou até em se meter em política, se candidatar; achava que o governo tinha o dever de ajudar o agricultor. Mas desistiu logo, pois não ia ter paciência para fazer campanha eleitoral. Então ele resolveu escrever um artigo chamado "Velha praga", que saiu no jornal “O Estado de S. Paulo”, falando exatamente das dificuldades de ser agricultor no Brasil e do seu pior inimigo: a queimada. O artigo foi notado por algumas pessoas: Lobato recebeu vários telegramas de apoio e foi convidado para dar conferências. Seu nome começou a ficar conhecido.

— Ô Visconde, acho que você se esqueceu do tal famoso personagem, o... Como é mesmo o nome dele?
— Jeca Tatu. Pois é, ele já vai aparecer.

"Velha praga" é só um início. Depois de um mês ele publica "Urupês", mais um artigo sobre as queimadas, e cria o personagem Jeca Tatu.

— Urupês? Que que é isso?
— Urupê é um parasita que nasce no tronco da árvore e suas raízes sugam toda a seiva da planta, até ela morrer.
— Que horror! E o Lobato não tinha nome melhor pra escolher, não?
— Mas, para o Lobato, o urupê era exatamente o Jeca Tatu, que não fazia nada e ainda acabava com a mata.

O Jeca Tatu virou um símbolo dos queimadores de mato. Nesse artigo, Lobato denuncia o abismo que há entre o homem da cidade e o do campo. Diz que as pessoas da cidade ainda têm uma visão romântica do campo, que ninguém vê o atraso em que vive o país no interior. Ele mostra que o que existe ali não é a força nem a coragem do caboclo, apenas invenções dos autores, mas a miséria e a doença. Lobato achava que o caboclo resumia tudo de ruim que possa ter o ser humano; só depois ele foi perceber que o caboclo era ignorante porque o governo não lhe oferecia educação e saúde. Na verdade, analisando-se bem a situação, nota-se que Lobato queria era arranjar um culpado para o seu fracasso como fazendeiro, e o Jeca era o culpado ideal. E, como ele tinha desistido de ser escritor para se tornar fazendeiro, o fracasso era duplo.

— Ai, quanto fracasso, senhor Visconde. Isso já está me dando agonia. Acho melhor meter o meu dedinho nessa história.
— Não, Emília! Eu já estou acabando, agora só falta escrever que...
— Sinto muito, senhor Visconde, mas seu tempo está esgotado. Além disso, ninguém quer ficar lendo sobre o fracasso dos outros. Portanto, eu vou começar a ditar a minha versão dos fatos.
— Como a sua versão dos fatos, se você não sabe de nada, Emília?
— Ora, a minha versão dos fatos inventados! Até parece que você não me conhece.
— Mas, Emília...
A boneca estava decidida. Pegou o papel e a pena do Visconde e começou a falar e a escrever tintim por tintim tudo o que nunca aconteceu mas era o que devia ter acontecido!

Lobato estava jururu com os tais Jacas-tatus, que não sabiam fazer nada além de molengar e pôr fogo no mato. Depois de matutar dia e noite, ele teve uma idéia:
— Já sei! Vou chamar o Curupira pra ele dar um jeito nesses jacas!
Lobato foi então para o mato com um pedaço de queijo e um pouco de fumo pra dar ao Curupira, que logo sentiu o cheiro e apareceu. Lobato travou uma prosa com ele:
— Boa noite, seu Curupira. Eu trouxe queijo e fumo pro senhor.
O Curupira não era nada simpático, nada educado, nada bonito, nada cheiroso, e ainda era estranho, com aqueles pés virados pra trás.
— Ocê tem um queijinho aí? — perguntou ele, todo interessado.
— Tenho, e é pro senhor.
— Ocê tem um fuminho aí?
— Tenho, e é pro senhor.
Quando o guloso foi pegar, o Lobato recuou e disse:
— Mas antes, seu Curupira, eu queria lhe pedir um favor: será que o senhor não podia dar um susto nos jacas-tatus da minha fazenda, que estão pondo fogo em tudo?
O Curupira ficou danado com aquela história.

— Não sei se você sabe, Visconde, mas o Curupira é o defensor da natureza — disse Emília, muito prosa, para o Visconde.
— Não me diga, Emília! — brincou o sabugo.
— É bom explicar, porque você é todo científico e pode não saber essas coisas que a Tia Nastácia conta.
— Essas coisas se chamam folclore, Emília.
— Bom, deixa eu continuar, senão eu perco o fio da meada.

E foi direto cuidar do assunto. Assustou os caboclos noite e dia: quando via um tacando fogo no mato, ia lá, dava um susto e botava o jaca pra correr; e nunca mais o jaca tinha coragem de botar fogo no mato. O Lobato deu o queijo e o fumo pro Curupira, que ficou feliz da vida. A fazenda começou a produzir tudo do bom e do melhor, e o Lobato ficou riquíssimo!

Emília foi se empolgando com o que inventava e parecia que não ia mais parar de falar:

Um dia o Lobato fez uma festa e chamou todo o pessoal do Reino da Fantasia: o Peter Pan, a Branca de Neve, a Cinderela, e eu, claro. Foi uma festa linda. No final o Lobato deu uma cesta com cada coisa gostosa... tinha maçã, banana, abacaxi, jabuticaba, maracujá, morango.

— Só que, quando eu estava voltando pra casa, a cesta caiu no rio e não deu pra trazer nem um tantinho assim pra você, Visconde.
O sabugo estava de boca aberta e se perguntava o que que a Tia Nastácia tinha colocado na Emília para ela ser tão asneirenta.
— Que tal, Visconde? Acho que assim ninguém dorme lendo essas memórias.
— Ninguém dorme, porque não consegue entender lhufas — disse o Visconde, desalentado.
— Mas isso é que é bom, muita ação!
— Muita confusão, isso sim. O Lobato tinha que fazer uma festa maravilhosa com a Cinderela e a Branca de Neve? Será que a Chapeuzinho também foi?
— Claro que foi! Ela, a vovó e o Lobo, que se comportou muito bem e não comeu ninguém. E eu até rimei!
— Emília, sem querer incomodar, será que agora eu poderia continuar a escrever a verdade dos fatos, que eu pesquisei? — perguntou o Visconde voltando a se entusiasmar.
— Pode, Visconde. Mas seja breve, senão as pessoas vão fechar esse livro antes de chegar a parte mais emocionante que é...
— ... quando você é inventada — disse o sabugo imitando o jeito da Emília.
— Isso mesmo!
O Visconde levantou os olhinhos e continuou as memórias:

Na época da publicação do artigo "Urupês", Lobato passou uma temporada em São Paulo e começou a escrever artigos para O Estado de S. Paulo. Ele estava bem mais animado, sonhando em publicar seu primeiro livro de contos. Já estava tentando vender a fazenda e se estabelecer em São Paulo. E eis que, para a sua alegria, ele vendeu a fazenda em 1917 para um tal senhor Alfredo Leite.

— Puxa, que bom! Vivas para esse senhor Leite! Agora Lobato é só escritor!
— Mas lembre-se que todos os contos do primeiro livro foram gerados em Areias e na Fazenda do Buquira. Todos têm o universo do caipira, da vida do interior.
— Pelo menos essa fazenda do avô serviu pra alguma coisa!

Lobato se mudou para a capital com a família, que tinha aumentado: Guilherme e Ruth nasceram. Nesse período ele começou a colaborar na “Revista do Brasil”, uma importante publicação da época, que trazia artigos sobre arte, letras, história. Essa revista tinha uma preocupação nacionalista muito grande: queria mostrar o Brasil para os brasileiros.

— Essa eu não entendi, Visconde. As pessoas não conheciam o Brasil?
— É que nas primeiras décadas do século a moda vinha toda da França: o chique era falar francês, ler livros em francês, se vestir como os franceses. Como hoje a moda é falar inglês, comer “cheeseburger”, naquele tempo o bacana era seguir as modas da França. E a “Revista do Brasil” queria valorizar as coisas do nosso país, por isso dava muito valor à cultura nacional.

E Lobato assentava como uma luva à “Revista do Brasil”, porque seus contos e artigos valorizavam a linguagem e a cultura brasileiras. Nessa época ele escreveu um artigo no jornal “O Estado de S. Paulo” que depois gerou uma enorme polêmica. Era uma crítica sobre a exposição de uma pintora chamada Anita Malfatti, que seguia uma linha mais aberta de arte, pintando coisas como ela sentia e não como são na realidade. Lobato não gostava, achava que era um exagero, que deformava a natureza, que os quadros dela eram mais caricatura do que pintura.

— Então, ela fazia licença poética na natureza, como os poetas — disse Emília, toda metida.

Anita pintava sem querer copiar a natureza, o que na época era uma novidade muito grande no Brasil, mas estava na moda na Europa, e era isso que deixava Lobato possesso. Além de não gostar daquele tipo de pintura, ele achava que a pintora era mais uma artista sem personalidade que "macaqueava" as modas da França. Depois ela ficou muito famosa e Lobato foi muito criticado por não ter entendido a sua obra. As pessoas que gostavam da sua maneira de pintar falaram que Lobato era atrasado, que ele só dava valor para as coisas do passado. Só que na literatura ele foi um dos primeiros autores a inovar na linguagem: queria modificar o jeito antigo de escrever, exatamente como a Anita Malfatti queria mudar o jeito antigo de pintar.

— Eu acho que eu sou como essa Anita “Mafalda”.
— Malfatti, Emília!
— Ela pintava do jeito que ela queria como eu escrevo sem me importar com os fatos.
— Então, você deveria escrever poesia ou romance, e não memórias.
— Mas aí não teria a mínima graça! Todos os poetas e romancistas inventam. Eu sou a única que invento em matéria de memórias, ou pelo menos assumo que invento!
— Bom, mas voltando à “Revista do Brasil”.

Quando Lobato começou a publicar seus contos na Revista do Brasil, foi ficando cada vez mais conhecido. Ele se empolgou tanto com a revista que, quando o convidaram para ser o editor, decidiu comprá-la.

— Ah, não, Visconde. Não estou acreditando nisso. Agora que ele vendeu a fazenda e foi pra São Paulo, em vez de ficar quieto escrevendo, ele foi ser editor!
— E um dos editores mais importantes do Brasil! Mas, Emília, não precisa ficar com essa cara.

Logo depois, ele lançou seu primeiro livro: Urupês, que fez um sucesso estrondoso. Na verdade, o livro ia se chamar "12 histórias trágicas", porque reunia contos um tanto cruéis, envolvendo morte e traições; o tema de todos é a vida do caboclo, retratada sem floreios, da maneira própria escola naturalista. O livro, impressionante, teve tiragens fantásticas e, quando já estava na terceira edição, um fato contribuiu para aumentar suas vendas: o famoso intelectual e político Rui Barbosa falou do livro de Lobato no meio de um discurso no Teatro Lírico, no Rio de Janeiro.

— E que que tem isso de mais? Por acaso esse Rui “Babosa” era algum rei da verdade?
— Rui Barbosa, Emília, era um dos homens mais inteligentes e respeitados do Brasil naquela época, considerado um poço de sabedoria. E o Teatro Lírico era um dos lugares mais chiques e bonitos, mas infelizmente foi derrubado. Então, imagina, quando o Rui Barbosa falou do livro, falou do Jeca Tatu, falou da miséria no interior do Brasil que o Lobato vivia denunciando, foi um auê. Todo mundo queria conhecer o Lobato, comprar os livros dele, discutir suas idéias. No dia seguinte saiu em todos os jornais: "Rui Barbosa cita o Jeca Tatu de Monteiro Lobato!".
— Chega desse Jeca, Visconde. Eu já estou ficando meio cansada dessa história.
— Pois é, e não é só você não. Até o Lobato começou a não agüentar o Jeca.

Por volta de 1919, ele notou que fora muito cruel com o caboclo; que, na verdade, a culpa era do governo, que fingia não ver o problema da miséria no interior do Brasil. Além disso, todo mundo queria discutir esse assunto com ele, porque muita gente não acreditava que a realidade era tão feia quanto ele pintava. Diziam que estava exagerando; que ele, sendo escritor, inventava coisas. Achavam até que ele  tinha sido pago para difamar o Brasil!

Fazendo uma rápida interrupção na leitura, o Visconde explicou:
— Nessa época não se falava tão mal do país como hoje em dia.
— É, hoje todo mundo mete o pau no Brasil e ninguém reclama.

Mas Lobato não estava difamando o país. Ao contrário, estava apontando os problemas e querendo soluções. Entrou até numa campanha de saneamento iniciada pelo governo. Escreveu artigos fervorosos sobre o atraso dos que viviam no campo, onde doenças como malária, lepra, sífilis e tuberculose acabavam com a população. Participou da luta dos grandes médicos sanitaristas, como Miguel Pereira, Oswaldo Cruz, Belisário Pena, Carlos Chagas, Artur Neiva e tantos outros. Reclamou do governo e dos intelectuais, que só sabiam torcer o nariz para os verdadeiros problemas do Brasil. Mas também estava cansado de ouvir todo mundo na rua perguntar pelo Jeca: "E aí, seu Lobato, cadê o Jeca? Como é que vai aquele molengão? Ô Jeca mais preguiçoso aquele, hein?". Aquilo já estava virando um tormento para ele.

— Não só para ele como pros leitores. Fica estipulado que ninguém mais fala do Jeca nessas memórias!
— Está bom, Emília, então vamos falar do Saci-Pererê.
— Oba! finalmente o Sítio chegou!
— Não, Emília, ainda não. Como eu já disse, o momento era de dar muito valor às coisas da terra. O nacionalismo era muito forte.

Sendo um dos escritores que mais defendiam a cultura brasileira, Lobato teve a idéia de fazer uma pesquisa sobre o Saci-Pererê entre os intelectuais e os artistas, para o jornal “O Estado de S. Paulo”. E constatou que todos lembravam alguma coisa sobre ele.

— Bom, mas depois ele escreveu o livro do Saci.
— É, mas antes ele fez essa pesquisa.

Ficou tão entusiasmado que resolveu escrever um livro com o tema. Assim, em 1918, antes de lançar “Urupês”, ele publicou “O Saci-Pererê: resultado de um inquérito”. As vendas foram boas, e depois de dois meses saiu a segunda edição. E foi nesse período que Lobato começou a se interessar em se tornar um editor de livros. Logo de saída, notou que o Brasil tinha muitos leitores mas os livros não chegavam até eles. O problema era acertar na distribuição do livro, isto é, levar o livro para todos os cantos do país. Naquela época, só existiam trinta e poucas casas que vendiam livros no Brasil inteiro! Lobato, então, resolveu mandar cartas para todos os comerciantes que quisessem vender "uma coisa chamada livro".

— Não me diga que ele fez um padeiro vender livro em vez de pão?
— Eu acho que era exatamente o que ele queria, tamanho o seu entusiasmo. Mas quem topou foram as farmácias, papelarias, bazares, bancas de jornal, que começaram a vender livros estimulados pela forma de pagamento. Lobato mandava os livros em consignação, quer dizer, os comerciantes só pagavam os livros que vendessem.
— Quer dizer que se o seu Zé das Dores chegasse na farmácia e pedisse um remédio pra dor de estômago saía de lá com um livro na mão?
— Não, é claro que não. Mas se ele quisesse um livro era só ir à farmácia, já que não tinha livraria, entendeu?
— E qual era o nome da editora? Que eu saiba, toda editora tem nome. Editora Sem Nome, por acaso?
O Visconde leu, depois de levantar os olhinhos:

No começo tudo funcionava sob a chancela da “Revista do Brasil”, que em 1919 se transformou em Monteiro Lobato & Cia. A editora ia de vento em popa, e Lobato, como sempre, só pensava em crescer. As edições eram de mil exemplares, numa época em que o normal era fazer edições de apenas quatrocentos exemplares. Lobato vibrava de entusiasmo, pois descobrira um país de leitores, e escrevia, satisfeito: "Isto é o melhor negócio que existe! Dizem que o Brasil não lê! Uma ova! A questão é saber levar a edição até o nariz do leitor, aqui ou em Mato Grosso, no Rio Grande do Sul, no Acre, na Paraíba, onde quer que ele esteja, sequioso por leituras... Livro cheirado é livro comprado, e quem compra lê. O Brasil está é louco por leituras. Só os editores é que não sabiam disso". O que acontecia de diferente na sua editora era que lá se lançavam autores novos e bons; os medalhões não entravam. E mesmo assim a editora vendia. Todos queriam publicar seus livros pela editora de Lobato. Ele não parava de receber amigos e desconhecidos querendo mostrar os originais. Era tanta gente que só dava para trabalhar mesmo no período da manhã, pois à tarde era uma festa.

— Estou vendo que com essa festança toda vai sobrar pouco tempo pra ele inventar os livros do Sítio.
— A verdade, Emília, é que o Lobato, depois que virou editor, cismou de ficar espalhando que não era mais escritor, que agora era um homem de negócios.

Mas mesmo nesse período de dono de editora ele publicou alguns livros de contos, como “Cidades mortas, Negrinha” e “O macaco que se fez homem”, feitos na época da faculdade, de Areias e da Fazenda do Buquira, os quais ele tirou da gaveta e reescreveu. Também lançou “Idéias de Jeca Tatu, Mundo da Lua” e “A onda verde”, livros que reuniam crônicas e artigos que Lobato publicava em jornais.

— “A onda verde”? O Lobato já fazia livro ecológico naquele tempo?
— Não.

“A onda verde” traz um artigo sobre o problema do café. Lobato achava errado o Brasil dedicar tantas terras a essa cultura; este era o principal produto de exportação daquele tempo, mas e se de repente a Europa e os Estados Unidos não quisessem mais café? E foi o que aconteceu: com a crise de 1929, ninguém podia importar nada. Lobato tinha escrito esse artigo em 1921!
Outra coisa muito importante na vida de Lobato era sua paixão pelo jogo de xadrez.

Emília olhou para o Visconde e não entendeu nada: será que o sabugo estava sofrendo de memorite aguda, doença que atinge pessoas que passam muito tempo escrevendo memórias? O que que tinha a ver falar de xadrez naquela altura do campeonato?
— Xadrez?! Mas quem quer saber se ele jogava xadrez ou não jogava, Visconde? Que idéia! Você está passando bem? Quer parar um pouquinho? Tomar um ar fresco? Comer um bolinho da Tia Nastácia?
— É que eu pensei que você poderia se interessar porque foi jogando xadrez que o Lobato teve a idéia de escrever a sua primeira história infantil. Mas você não está muito interessada, não é?
— Ei! Finalmente! Vivas para esse jogo de xadrez! Conta logo, Visconde! Como é que foi que a gente nasceu?
— Bom, deu-se o seguinte:

Lobato gostava demais de jogar xadrez, desde que era jovem. Mas era muito distraído e não prestava atenção nas jogadas do adversário. O engraçado era que ele reclamava dos seus próprios lances como se o adversário tivesse roubado: "Isso não vale! Fiz uma péssima jogada!".
Nas últimas horas do expediente, a redação da Revista virava um clube. Numa dessas tardes, apareceu um amigo, chamado Toledo Malta, que, é claro, foi convidado para jogar uma partida. Só que, enquanto jogava, esse Toledo contou uma história sobre um peixinho que, tendo ido dar um passeio fora do rio, quando voltou para casa morreu afogado, pois não sabia nadar.
Lobato adorou essa história — disse que o peixinho começou a nadar na sua imaginação.

— Que história mais boba! — disse Emília, com ciúmes.

Quando Malta saiu, ele correu para a mesa e começou a pôr a história no papel. Depois, contou que as recordações da roça, do ribeirão, da floresta, das brincadeiras com as irmãs também começaram a aparecer, e de repente ele estava escrevendo: "Naquela casinha branca, lá muito longe, mora Dona Benta, uma velha de mais de sessenta anos".

— Visconde, você só pode estar caçoando de mim. Você acha que eu vou engolir essa história?
— Mas de que você está falando, Emília?
— Você acha que alguém vai acreditar que o famoso Sítio do Pica-Pau Amarelo foi inventado por obra e graça de um peixinho afogado?
— A coisa não é bem assim, Emília.

A história do peixe afogado, que foi até publicada mas Lobato nem lembrava mais onde, despertou nele a lembrança do ribeirão onde pescava quando criança. E a primeira aventura do Sitio é exatamente quando Narizinho, estando no ribeirão, entra no Reino das Águas Claras e conhece o Príncipe Escamado. Quando Lobato sentiu vontade de criar uma história maior, escreveu “A menina do narizinho arrebitado”, livro ilustrado por Voltolino e publicado em 1921.

— O nome do livro é “Reinações de Narizinho”, Visconde! Você está me saindo um sábio de meia-tigela! E olha que eu nem fiz pesquisa.
— Mas era “A menina do narizinho arrebitado”, sim, Emília.

A maioria das pessoas não sabe, mas Lobato reescreveu muita coisa mais tarde, em 1925. E também mudou o título desse livro. No começo os livros do Sítio eram visivelmente dedicados às escolas, tanto que o subtítulo do “A menina do narizinho arrebitado” era: "Segundo livro de leitura para uso das escolas primárias". A forma do texto era didática e havia comentários como: "Que pena! Tudo aquilo não passara de um lindo sonho!". Tempos depois, quando Lobato já havia percebido a importância do mundo que estava criando, passou a misturar fantasia e realidade.

— Quer dizer então que no começo ele nem ligava pra gente?
— No começo a gente nem existia, Emília.
— Como assim, eu não existia? — berrou Emília, completamente fora de si.
O Visconde ficou assustado com a reação da boneca, mas depois encheu o peito e falou toda a verdade, mesmo achando que ela podia mudar tudo:
— É isso mesmo, Emília, no começo você era uma boneca de pano comum, sem muita importância. Só mais tarde é que você se tornou o que todo mundo sabe: uma boneca, crítica acima de tudo, que fala pelos cotovelos, que é uma dadeira de idéias, que fala o que lhe vem à cabeça. No final, o Lobato achava que você é que o dominava e não o contrário.
O Visconde disse tudo isso de um só fôlego, e logo foi entregando o papel e a caneta para a Emília fazer a versão dela. Mas a boneca teve uma reação totalmente inesperada: ficou decepcionada e sentida, pois achava que desde o começo havia sido a personagem principal do Sítio.
— Eu não vou fazer licença poética nenhuma, Visconde. Eu queria ver se fosse com você. Sempre pensei que o Lobato tinha me inventado primeiro pra depois inventar a Narizinho, o Pedrinho, você, a Dona Benta, a Tia Nastácia. Mas pelo visto eu fui a última, e ainda tive que tomar pílula com gosto de sapo pra poder falar. Vocês não, já nasceram falando.
— Emília, não seja dramática. E eu que já morri e só depois é que a Tia Nastácia me fez novamente?! Você está reclamando de barriga cheia! Com o tempo você se tornou a mais importante, a mais faladeira, a que participa de mais aventuras, a que tem o pó de pirlimpimpim. O que que você queria mais?
— Eu queria ter nascido como eu sou. Pelo que você falou, ele nem ligava pra mim no começo. Eu era uma bonequinha de pano igual a milhares dessas que existiam aí pelo interior.
O Visconde tentou animar a boneca:
— Emília, não fica assim, você está fazendo tempestade em copo d'água. Nenhum escritor cria os livros já prontos. Sempre há uma evolução. O autor nunca fica satisfeito com o que escreve, e muitas vezes corta e acrescenta coisas no texto. Os personagens também vão se modificando, vão crescendo, como você cresceu e tomou conta de tudo, tanto que o Lobato dizia que era você que dominava ele. E uma coisa muito interessante é que, quando ele começou a escrever sem pensar em ensinar, mas só em divertir, você começou a crescer e aparecer. E aí as crianças já adoravam os livros do Sítio.
Emília foi se entusiasmando:
— Bom, então ele vendia livro do Sítio pra caramba?
— Vendia. Mas o engraçado é que ele ficava mais encorajado com as vendas do que com o novo rumo que estava dando à sua literatura. O Lobato editor dava pulos de alegria, enquanto o Lobato escritor não se dava conta do que estava criando.
— Ué, agora são dois Lobatos? — implicou Emília.
— É lógico que não! É só um modo de dizer que uma pessoa está envolvida com duas coisas diferentes. Mas, Emília, continuando: aconteceu uma coisa que fez a venda dos seus livros disparar.
— O tal do “Rui Babosa” falou bem dele de novo no tal Teatro Lírico lá no tal do Rio de Janeiro?
— Não, o Rui Barbosa não lia livro para criança.
— Por quê? Ele não sabia ler?
— É claro que o Rui Barbosa sabia ler. O que aconteceu foi o seguinte:

A primeira edição de “A menina do narizinho arrebitado” foi de cinqüenta mil livros! Um absurdo para a época, e mesmo hoje, quando as edições são normalmente de três mil exemplares. Só que o Doutor Washington Luís, então governador de São Paulo, tendo ido um dia visitar as escolas, notou que em todas as bibliotecas havia um livro bem gasto, já bem acabado: era “A menina do narizinho arrebitado”, que o Lobato tinha ofertado às escolas. O Doutor Washington Luís pensou que aquele livro devia ser muito querido pelas crianças, e resolveu mandar comprar novos exemplares para todas as escolas de São Paulo. Quando perguntaram a Lobato quantos livros ele teria para vender, ele respondeu: "Temos “Narizes” a dar com pau. Posso fornecer cinco mil, dez mil, vinte mil, trinta mil...". O governo pediu trinta mil Narizinhos, e a primeira edição se esgotou em oito meses!

Emília, que não estava prestando muita atenção, de repente teve um estalo:
— Visconde! Tive uma idéia maravilhosa! Vamos lançar as nossas memórias do Lobato pela editora dele!
O Visconde ficou sem graça. Como é que ele ia explicar para a boneca que a editora, depois de vários contratempos, tinha falido? Emília ia ficar tiririca da vida e ia querer meter o bedelho nas memórias de novo.
— Bem, Emília... acho melhor não... Na verdade, a editora não existe mais...
— Como assim?! Mas não ia tudo de vento em popa, Visconde? E aqueles leitores todos, os autores querendo publicar na editora, acabou tudo, de uma hora pra outra?!
— Não foi de uma hora para a outra.

A editora de Lobato pediu falência em 1925. Vários fatores contribuíram para que isso acontecesse. Um dos mais importantes foi a Revolução de 1924, comandada por Isidoro Dias Lopes na capital paulista. A cidade parou durante um mês inteiro; morreram mais de quinhentas pessoas. A editora também ficou parada. E foi essa a razão do prejuízo. Lobato tinha comprado a prazo máquinas mais modernas e começou a ficar devendo dinheiro. Então São Paulo passou por uma seca terrível, e a energia elétrica foi diminuída em dois terços; de novo as máquinas pararam e houve mais prejuízo. Tudo isso, somado à medida bancária que dificultava os empréstimos por parte do governo, levou Lobato a pedir falência. Mas pouco tempo depois conseguiu pagar todos os seus credores, e ainda sobrou um dinheirinho para ele abrir uma nova editora com seu sócio Otales Marcondes Ferreira. O nome da empresa era Companhia Editora Nacional. Numa carta para Godofredo Rangel ele conta que iria recomeçar com bases mais sólidas. Lobato já era um nome muito conhecido, não só como escritor e editor, mas também como um polemista de primeira. Adorava uma discussão, adorava criticar, questionar, dar sua opinião.

— Por falar em dar sua opinião, Visconde, eu estou achando que já está na hora de terminar essas memórias.
— Mas ainda falta tanta coisa: a ida do Lobato aos Estados Unidos, a Campanha do Petróleo, e eu quase não falei do Sítio.
— Mas você mesmo disse que ele não dava muita bola pros livros do Sítio!
— Isso foi no começo, depois o Lobato viu que a coisa mais importante da vida dele era escrever os livros do Sítio.
— Depois quando? Quando ele ficou bem velhinho e gagá?
— Não, Emília, quando o Lobato começou a perceber que o negócio dele não era escrever para os marmanjos, e sim para as crianças. Dizia que os adultos não tinham mais jeito. Apesar disso, os adultos adoravam os livros do Sítio. Só que ele não ficava trancado em casa escrevendo; o Lobato era um homem que não se conformava com a pobreza do Brasil e vivia discutindo, criticando o país, questionando o governo. Por isso é que ele foi para os Estados Unidos.
— Muito bonito! Reclama de tudo, fala mal de todo mundo, e depois se manda. Assim eu também quero!
— Não é nada disso, Emília. O Lobato realmente criticava tudo, mas era o jeito dele de dizer que amava o Brasil.

Nessa época, depois da falência da editora, Lobato foi morar na Cidade Maravilhosa, no Rio de Janeiro, que era a capital do país. O Rio era um centro cultural, o que animava o escritor, mas ao mesmo tempo era o cenário das decisões políticas, e ele começou a ficar meio desencantado com o que via. Passou a escrever nos jornais cariocas “O Jornal” e “A Manhã”. Fez uma série de artigos que mais tarde publicou num livro com o título de “Mr. Slang e o Brasil”.

— Mr. Slang? Nunca ouvi falar. Foi esse Mr. Slang que chamou o Lobato para os Estados Unidos?
— Não, Emília.

Mr. Slang foi um personagem que Lobato inventou. Era um velho inglês morador da Tijuca, um bairro do Rio, que ficava jogando xadrez e discutindo com um "homem comum" todos os problemas do Brasil da época, que, aliás, não mudaram muito: a inflação, a política, a corrupção, a burocracia, a educação, a pobreza. Era na boca desse personagem que Lobato punha as críticas irônicas, bem-humoradas, que fazia. Só que muita gente reprovava Lobato: diziam que ele era cético, pessimista, que só via os buracos e não via o queijo. Diziam que ele não amava o Brasil, que era antipatriota. Foi então que o presidente, que era o Doutor Washington Luís, convidou Lobato para ser adido comercial nos Estados Unidos, julgando que, conhecendo outro país, ele veria que o Brasil não era tão ruim assim. O escritor, que era louco pelos Estados Unidos e achava que o Brasil tinha que seguir os passos dos americanos e não os dos franceses, ficou muito satisfeito e foi com toda a sua família para Nova York.

— Vem cá, Visconde, você está acreditando nisso? Esse presidente mandou o Lobato embora pra ele parar de descer o sarrafo no governo! E o pior é que o Lobato aceitou.
— Não, Emília, as coisas não foram bem assim. Está certo que o Washington Luís não devia estar muito satisfeito com as idéias do Lobato, mas com certeza a achava que ele era a pessoa ideal para representar o Brasil lá fora, senão ele nem convidava o Lobato para ser adido: era só mandá-lo parar de escrever os artigos.
— E por que que o Lobato aceitou? Você disse que ele amava o Brasil, e aí largou tudo e foi embora?
— Não foi bem "largou tudo e foi embora". Ele amava o Brasil, mas tinha admiração pelos Estados Unidos, achava que tudo lá era sensacional, que tudo lá era progresso, Ele foi para lá pensando no Brasil, pensando em aprender as coisas de lá e trazer para cá.
— Sei, e o que que ele aprendeu? A fazer Coca-Cola, por acaso?
— Não.

Lobato ficou deslumbrado com a riqueza, o progresso, as estradas americanas. O cinema falado era a grande novidade, tudo muito moderno, ágil; foi como se ele tivesse feito uma viagem para o futuro. Numa carta ele disse: "Imaginei grande, mas é maior! É imenso, é infinito, é um mundo novo, sinto-me encantado com a América! O país com que sonhava, Eficiência! Galope! Futuro! Ninguém andando de costas!". Ele até escreveu um livro chamado “América” em que fala sobre tudo o que viu e tudo o que achou das cidades e do povo americano.

— Ah, essa é boa! Aqui no Brasil a moda era andar de costas? — brincou Emília.
— Você sabe muito bem que ele estava querendo dizer que aqui as pessoas eram mais vagarosas, mais lentas. E foi isso que o incomodou no começo, achava impossível o Brasil sair daquela pasmaceira.

Depois de quatro anos e alguns meses nos Estados Unidos, Lobato estava convencido de que a saída para o Brasil era a sua riqueza. Nesse tempo todo ele pudera observar que o progresso só aparecia com o desenvolvimento econômico do país e que só com a ajuda das máquinas o homem podia progredir. Ora, naquela época o Brasil não fabricava máquinas, nem tinha ferro, e tampouco explorava petróleo. E então ele percebeu que só com ferro e petróleo o Brasil iria se tornar independente.

— Acho que o Lobato não estudou história do Brasil direito, Visconde. Dom Pedro I já tinha proclamado a independência do Brasil fazia muito tempo.
— Mas, mesmo depois da independência, o Brasil continuou dependente de Portugal.

Com um imperador português, continuávamos a ser colônia de Portugal. Não havia uma política concreta para enriquecer o país; ao contrário, o Brasil ficava cada vez mais dependente, cada vez mais necessitado de dinheiro. E, em vez de fabricar as coisas, ele vendia a matéria-prima por um preço muito baixo e comprava por um preço muito mais alto as coisas já fabricadas. E Lobato achava que produzindo ferro e explorando petróleo o Brasil poderia enriquecer e passar a não depender de outros países. Ele começou a escrever para os governantes, dando idéias novas de como produzir o ferro de uma maneira mais barata, mas não recebeu nenhuma resposta animadora. Fazia relatórios e mais relatórios sobre as fábricas que visitava nos Estados Unidos. Só que nesse período aconteceu a célebre crise de 1929.

— Aquela crise do café de que você já falou.
— É, foi uma crise no mundo todo.

Houve desemprego, fome. E os países não tinham dinheiro para importar café, ou qualquer outro produto. E aqui no Brasil essa crise acabou provocando a Revolução de 1930, que marcou o fim de uma política antiga, dos que apoiavam os donos da terra. Era o fim da República café-com-leite.

— Não ia ter mais café-com-leite no Brasil?
— Não, Emília.

Esse foi o nome que deram para o período da República totalmente voltado para a agricultura, porque as pessoas que governavam eram pessoas ligadas à aristocracia rural, aos donos das terras. E na Revolução de 1930 quem tomou o poder foi Getúlio Vargas, que tinha uma visão mais moderna e queria industrializar o Brasil.

— Visconde, que tal se a gente deixasse esse negócio de política pra lá e voltasse pro Lobato?
— Mas a vida do Lobato é toda voltada para o Brasil, Emília. É difícil falar dele sem falar em política, campanhas. Mas vamos tentar.

Quando Lobato voltou para o Brasil em 1931, obcecado por mostrar que sem ferro o Brasil não ia andar, fez conferências, relatórios, mostrou maneiras baratas de se produzir o ferro, escreveu até um livro, mas ninguém quis ouvi-lo. Então ele se voltou para a questão do petróleo. Fez novas conferências, novos relatórios e não obteve resposta. Todos os especialistas do governo o aconselhavam a desistir porque não havia petróleo no Brasil.

— Que mentira! Nós mesmos achamos petróleo no Sítio!
— Pois é, Emília.

Mas Lobato tinha certeza da existência do petróleo no Brasil. Por isso, quando viu que na verdade o governo não queria explorar o petróleo, decidiu partir para uma campanha particular, convocando o povo a ajudá-lo.

— Quer dizer que todo mundo foi cavar buraco com o Lobato?
— Claro que não.

Lobato pedia às pessoas que se associassem a ele comprando ações da Companhia Petróleo do Brasil, pois assim ele teria capital para começar as explorações. Lobato contava que uma vez um homem negro e muito humilde foi comprar ações na companhia. Achando o homem muito pobre, ele lhe disse que aquilo poderia não dar certo, que poderia demorar muito para achar petróleo.
Mas o homem queria porque queria trinta ações. Lobato tentou convencê-lo a comprar menos ações, mas o homem disse que trouxera as economias de toda a sua vida e queria trinta ações. Então Lobato perguntou se ele desejava ficar rico, e o homem respondeu: "Não, eu quero ajudar o Brasil". Isso o emocionou tanto que fortaleceu sua convicção de que iria achar petróleo no Brasil de qualquer maneira. Lobato viajou o país de norte a sul, explicando que era importante ter petróleo e que o país que tinha petróleo era um país rico. Foi uma luta que durou dez anos.

— E nesse tempo ele nem escrevia?
— Escrevia, traduzia, fazia tudo, só que à noite.

Além disso, a Campanha do Petróleo serviu para que ele notasse como era querido em todo o Brasil. Todos queriam conhecer o famoso autor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. As pessoas gostavam do Lobato polêmico e patriota que lutava pelo país, mas queriam mesmo era conhecer o Lobato escritor. Essa luta pelo petróleo foi muito dura e cansativa. A imprensa e o governo falavam que não existia petróleo de jeito nenhum no Brasil e que aquela era uma campanha de loucos. Mas mesmo assim Lobato e seus companheiros continuavam fazendo pesquisas em vários estados. E acabaram achando petróleo numa cidade da Bahia chamada Lobato.

— Essa é boa!
— E o mais incrível é que o Lobato tinha escrito dois anos antes “O poço do Visconde”, onde eu apareço achando petróleo em Lobato.

No livro “O poço do Visconde”, que é de 1937, ele aproveitou para explicar às crianças tudo sobre petróleo. Lobato já tinha escrito para os adultos um livro chamado “O escândalo do petróleo”, sobre a batalha contra o governo, que havia criado o Conselho Nacional do Petróleo.

— Ué, mas eles diziam que não tinha petróleo e fizeram um conselho do que não existia?
— Foi exatamente isso que o Lobato falou.

A função do Conselho era acabar com as companhias e forçar os jornais a parar de comentar o assunto, proibindo que se fizessem declarações a respeito do petróleo. E quem tinha dado dinheiro para a campanha comprando ações ficou sem entender nada. Lobato queria explicar a situação, mas os jornais eram censurados pelo Getúlio Vargas.

— Mas isso eu não entendo, Visconde. Por que um presidente não quer que seu próprio país fique rico?
— Isso é muito complicado.

Na verdade, quem não queria que o Brasil explorasse petróleo eram os Estados Unidos, porque assim eles poderiam continuar a vendê-lo para o nosso país. E o governo não queria briga com os americanos.

— Puxa! E era esse o país que o Lobato tanto admirava? Eu odeio esses “Estadozunidos”!
— Depois, o Lobato entendeu que eles não eram ricos só por causa do trabalho deles, mas principalmente porque exploravam outros países, como o Brasil, por exemplo.
— Como é que um presidente pode mentir, enganar assim todo mundo?
O Visconde preferiu ler:

O presidente Getúlio Vargas tomou medidas muito populares, como o pagamento do salário mínimo, e foi responsável por várias leis que ajudaram os trabalhadores, mas ao mesmo tempo ele censurava os jornais que falavam mal dele e prendeu muita gente, inclusive Lobato.

— O quê? O Lobato na prisão? Que história é essa, Visconde?! Por acaso ele roubou ou matou alguém?
— Claro que não, Emília.

Como já estava desesperado e não tinha mais a quem recorrer, Lobato escreveu uma carta para o Getúlio pedindo-lhe que apoiasse a Campanha do Petróleo. O presidente resolveu convidá-lo para trabalhar no governo, e é claro que ele recusou o convite. Mais tarde, tendo sido convidado para um banquete, em que sentaria ao lado do ditador, Lobato recusou de novo o convite. No dia 20 de março de 1941 ele foi preso.

Emília ficou possessa. O Visconde achou que ela ia acabar com as memórias ali mesmo.
— Puxa, que raiva desse Getúlio Vargas! Que que ele pensava que ele era?! Só porque o Lobato não aceitou o convite pra trabalhar e jantar ele já foi prendendo, é? Foi ele que se matou pra sair da vida e entrar na história, não foi?
— Foi ele mesmo que escreveu isso na carta de despedida.
— Pois ele devia ser expulso da história! Eu punha ele lá na Dona Gramática pra ele ver o que é bom!
— Calma, Emília. Depois o Lobato foi solto. Quer dizer... não foi logo depois.

Foi condenado a seis meses de cadeia, mas passados três meses foi liberado pelo juiz.

— Três meses numa prisão? Um homem que amava o Brasil, que só queria que o Brasil ficasse rico! Que injustiça! Eu odeio injustiça, Visconde!
— Foi um período duro para o Lobato. Um homem que amava a liberdade e que sempre havia lutado por ela.

Na prisão Lobato descobriu uma coisa horrível: os policiais torturavam os presos, alguns dos quais chegavam a morrer! Ele escrevia para todo mundo que conhecia denunciando todas essas barbaridades. Entregou-se ao trabalho feito um louco, tendo escrito e traduzido muitos livros na prisão. No começo ele até se dizia feliz, porque podia escrever e traduzir sem pensar em petróleo, sem pensar em Brasil. Mas é claro que ele preferiria estar livre, em casa, com a família.

— Visconde, em vez de falar em prisão e tortura, por que você não fala um pouco da família do Lobato?
— Pois é, esse também é um assunto bastante triste.

Lobato teve quatro filhos: Martha, Edgar, Guilherme e Ruth. Os homens adoeceram e morreram bem cedo — Guilherme em 1938 e Edgar em 1943. Lobato sofreu muito com a morte deles, e se culpou a vida toda, achando que não tinha dado atenção suficiente à família.

— Que horror, Visconde! Você realmente não entende nada de memórias. Você só fala coisas tristes: crise, prisão, pobreza, doença, morte! Nós temos que acabar essas memórias pra cima. Aposto que todos os leitores vão fechar esse livro antes do fim, de tanta infelicidade.
O Visconde foi logo aceitando a idéia da Emília, antes que ela decidisse fazer uma daquelas famosas licenças poéticas.
— Isso mesmo, Emília, vamos falar de coisas boas.

Quando saiu da prisão, Lobato não queria ouvir mais falar em petróleo. Feliz, é claro que ele não estava, mas se animou com uma boa notícia: tinha vendido mais de um milhão de livros! Era o autor que mais vendia não só no Brasil como na América Latina!
Em 1944, fundou a Livraria Editora Brasiliense, com Caio Prado Júnior e Artur Neves, e no ano seguinte publicou suas “Obras completas”. Foi um trabalho e tanto: Lobato precisava rever todas as provas dos trinta volumes! E ele sempre achava alguma coisa para modificar.
Foi nessa época que ele percebeu que tinha passado a vida toda querendo enriquecer como empresário para ficar escrevendo, mas que na verdade tinha ganho dinheiro com a literatura e perdido tudo com os negócios.

— Eu estou dizendo isso desde o começo! Bem que eu falei que esses negócios de fazenda e de petróleo não iam dar certo.
— Por falar em petróleo, é bom não esquecer que depois o governo começou a explorar petróleo, e lembrava-se muito do nome do Lobato e de tudo o que ele tinha escrito sobre a importância desse produto.
— Ah, essa é boa! Depois que o Lobato lutou durante dez anos e foi parar na cadeia é que chegaram a essa belíssima conclusão?
— É, Emília, a luta foi dura, mas no final ele conseguiu que o Brasil explorasse petróleo!
— Só que ele já tinha morrido, aposto! Não vejo graça em lutar por algo e depois bater as botas sem ver no que deu.
— É, essas coisas acontecem. Mas pense bem: se o Lobato e seus companheiros não tivessem feito a Campanha do Petróleo, hoje nós estaríamos mais atrasados ainda. O que eles fizeram, o que o Lobato escreveu, abriu caminhos para os novos continuarem a batalha. Foi uma semente que eles plantaram. E conseguiram o que queriam. Mas uma coisa contra a qual o Lobato escreveu muito e cujo fim presenciou foi a Segunda Guerra Mundial.
— E aí ele escreveu “A chave do tamanho”, que é um dos melhores livros do Lobato, sem dúvida nenhuma — disse Emília, toda gabolenta.
O Visconde leu:

Durante a Segunda Grande Guerra, Lobato escreveu um livro que pretendia chamar de "A revolução da Emília", mas depois deu-lhe o título de “A chave do tamanho”. Essa aventura, em que a boneca Emília acaba com a guerra, reduzindo o tamanho de toda a humanidade, expressa o desejo do escritor.

— Como as guerras são horríveis, Visconde. E o pior é que são quatro ou cinco presidentes metidos a corajosos que decidem que estão em guerra. Mas na hora do vamos ver, em vez deles irem lutar, mandam os soldados, que saem matando gente que não tem nada a ver com o assunto.
— É, Emília. Tem muita coisa nesse mundo que a gente não entende, mas vamos falar de coisas boas! Você sabia que o Lobato recebia muitas cartas?
— Cartas? De quem?
— Dos leitores.

Lobato recebia milhares de cartas de crianças falando dos livros do Sítio. Ficava muito feliz e fazia questão de responder a todas.

— Olha essa aqui, Emília, de um menino, que delícia: "Bom-dia, senhor Monteiro Lobato. Sabe que eu ganhei o seu livro “O Saci”? Já tenho outros, mas “O Saci” é o mais engraçado. Eu me ri a valer quando o Saci puxou o cabelo da Iara. Que pena que a gente nasce gente e não saci!".
— Essa é boa! O menino queria ser saci!
— Tem outras pedindo fotos, livros autografados e até o pó de pirlimpimpim!
— E o que o Lobato dizia?
— Dizia que isso era com você ou com o Pedrinho. Mas as crianças queriam fazer parte das aventuras do Sítio. Todos queriam conhecer você, Emília! Queria comer os bolinhos da Tia Nastácia, ouvir as histórias da Dona Benta, participar das aventuras do Pedrinho caçando a onça ou indo à Lua, ir com Narizinho para o Reino das Águas Claras. Queriam conhecer o Burro Falante, o Quindim, o Marquês de Rabicó.
— Conhecer o Rabicó?! Que idéia, Visconde! Aquele porco guloso, aposto que ninguém queria conhecer nem de longe! — ralhou Emília, indignada.
O Visconde preferiu continuar a leitura:

As crianças também mandavam livros escritos por elas e exigiam que ele lesse: "Eu vou publicar um livro chamado $"Aventuras de Halley$" e espero que o senhor leia, e acho muito justo que assim o faça, porque eu já li todos os seus livros".

— É mesmo, se o Lobato estivesse vivo eu obrigava ele a ler as nossas memórias dele!
— Pois você sabia que no final da vida o Lobato teve a idéia de fazer as memórias dele, e contadas por mim?
— Você é um mentiroso de marca maior, Visconde! Que história é essa?
— É verdade. No final da vida ele pensou em escrever as suas memórias narradas por mim, e depois você iria fazer a minha campanha para eu ser eleito na Academia Brasileira de Letras.
— Sabe, Visconde, acho que você tem mesmo cara de acadêmico!
O Visconde não sabia se agradecia porque não sabia se aquilo era realmente um elogio. Resolveu voltar às memórias:

Mas não era só das crianças que ele recebia cartas. Alguns adultos também escreviam coisas de emocionar. Uma mãe, antiga leitora de Lobato, pediu uma foto dele para dar ao filho que só tinha dois meses! Ela ia ler os livros dele para o filho logo que ele crescesse. Lobato mandou o retrato, mas brincou dizendo que o menino iria mesmo é fazer uns grandes bigodes, uns óculos e um cavanhaque na cara dele. Outra carta solicita-lhe que autografe um livro: "Desejava pedir-lhe um grande favor: poderia o senhor assinar o livro que vai junto para eu guardar como relíquia, para os meus filhos?". Mas a carta mais comovente é a de uma senhora: "No meu desespero, diante de tanta coisa que sucede a uma família grande e de poucos recursos, quando não vejo o caminho e o desespero chega ao limite, sabe o que faço? Corro ao Sítio de Dona Benta. Transporto-me para lá por uma hora ou duas e saro! Meus desesperos adormecem. Chego a rir. A razão desta carta é essa: quero agradecer ao senhor o conforto que seus livros me têm proporcionado. Li-os em menina para me divertir, e depois de velha uso deles como remédio".

— "Remédio"! Mas remédio é tão ruim. Será que ela não poderia ter usado outra palavra?
— Isso não interessa, Emília. O fato é que ela se sentia bem lendo os livros de Lobato e esquecia dos problemas. E por falar em problemas:

Os livros do Sítio, infelizmente, não recebiam só o carinho dos leitores. Lobato sofreu diversas críticas e seus livros, ataques tremendos. Muitos achavam que ele não era patriota, que ele criticava todo mundo e que não era bom falar mal dos governantes para as crianças. Lobato respondia que era importante passar o espírito crítico para o leitor e dizia que tudo o que escrevia era verdade, mas as pessoas estavam acostumadas a mentir para as crianças dizendo que o Brasil era um país maravilhoso. Ele foi o primeiro autor a escrever para crianças sem tratá-las como coitadinhas que não vão entender nada. O pavor que Lobato provocava nos adultos era tão grande que algumas escolas oficiais mandaram retirar os livros dele das bibliotecas! Quase todos os colégios católicos proibiram os livros do Sítio porque o autor dizia que o homem descendia do macaco. Disseram até que uma freira pediu a todas as meninas que tivessem livros dele que os levassem ao colégio. Depois, ela fez uma fogueira com os livros! E isso no Rio de Janeiro, antiga capital, em 1942!

— Ela queimou a gente, Visconde! Isso não se faz! Morremos queimados, como bruxas e hereges! Parece coisa lá da Idade Média.
— Não dramatiza, Emília. Só alguns livros foram queimados.
— Virei churrasquinho de Emília! — berrou Emília, fazendo o maior escarcéu.
— As pessoas falaram coisas horrorosas de você, Emília. Disseram que você fala muita gíria, inventa palavras que não existem e que depois do casamento com o Rabicó quis logo se divorciar.
— Ah, eu queria ver se fosse com elas. Casar com um porco guloso que vive chafurdando no lixo e depois descobrir que ele é um falso marquês! Só mesmo me divorciando. Que que elas queriam? Que eu matasse o Rabicó e ficasse viúva?! Agora, e de você, Visconde, não falaram mal?
— Se falaram! No livro “O poço do Visconde” eu digo que tem petróleo no Brasil, só que o governo dizia que não tinha e era proibido falar nesse assunto. Muita gente achava que as crianças não podiam ler um livro que contrariava o governo. Mas, Emília, vamos voltar para as coisas boas. Sabia que o Lobato era muito querido na Argentina?

Toda a obra de Lobato tinha sido traduzida na Argentina e fazia um sucesso enorme entre as crianças quando, em 1946, ele foi morar em Buenos Aires e, como sempre, criou polêmicas, criticando o Brasil.

— Mas ele ficou muito tempo lá?

No começo, dizia que ficaria morando lá para "nunca mais voltar", mas menos de um ano depois já havia retornado à Paulicéia, muito cansado e doente. As crianças queriam novas aventuras do Sítio, e Lobato respondia: "A Emília já disse que não presto mais, que estou uma porcaria, que ela vai procurar outro".

— E sabe que é verdade, Emília? Muitos autores dizem que você influenciou a obra deles. Se nós formos analisar bem...
— Visconde, vamos deixar de lero-lero e acabar logo com isso! — interrompeu a boneca.
— É, Emília, você tem razão, em algum momento a gente vai ter que falar disso mesmo, não é? — disse o Visconde emocionado, enxugando as lágrimas.

Na madrugada do dia 4 de julho de 1948, eleteve uma síncope e, como vivia dizendo, "foi se encontrar com seus filhos".


Emília estava querendo derramar umas lágrimas, mas como era muito orgulhosa abriu a torneirinha para ver se disfarçava.
— Bom, Visconde, vamos logo com isso. Agora nós temos que procurar um editor e depois temos que fazer o lançamento e depois vamos dar entrevista na televisão e...
De repente o Visconde é que ficou todo afobado:
— Calma, Emília, tem muita coisa ainda para a gente falar do Lobato:

Depois da morte de Lobato, o Sítio do Pica-Pau Amarelo se transformou duas vezes em programa de televisão.

— Puxa! Eu virei atriz e nem sabia!
— Pois é.

A primeira vez foi em 1952, quando Júlio Gouveia e Tatiana Belinky adaptaram o Sítio para a TV na Rede Tupi de São Paulo. Naquela época a televisão era como o teatro: tudo era feito na hora; se alguém errasse, todo mundo via. Esse programa ficou no ar até 1964.

— Puxa, que pena o Lobato não ter visto a gente na televisão!

A segunda vez foi entre 1978 e 1989, na Rede Globo, que transmitiu o Sítio para o Brasil inteiro. De vez em quando o programa volta a passar na TV Educativa e na TV Cultura. Nessa época fizeram uma revista em quadrinhos com os personagens do Sítio, e um disco muito bonito. As crianças que não conheciam o Sítio começaram a ler os livros e a descobrir as aventuras de seus personagens. Lobato é considerado o pai da nossa literatura infantil, suas obras são estudadas por muitos amantes da literatura e os autores de livros para crianças que surgiram a partir de 1970 são considerados os "Filhos de Lobato".

Emília estava com as mãos na cinturinha e um ar de impaciência danado.
— Acabou, senhor Visconde?
— Acho que sim. Mas por que tanta pressa, Emília? Parece que vai tirar o pai da forca.
— Não é nada disso, é que eu gostei da idéia de indicar você pra Academia de Letras, e pra isso nós temos que publicar o livro logo.
— Mas, Emília, você acha que eu, um pobre sabugo, tenho chances de entrar na Academia? Eles não devem nem saber quem eu sou.
— Ah, mas isso não é problema. Eu me encarrego de fazer a sua campanha. Vamos mandar leitões assados, cestas de jabuticaba, pipoca, bolinhos para todos. Se você não sabe, Visconde, fique sabendo, o Lobato já dizia: imortal se pega pela boca!
O Visconde ficou bobo com a animação da Emília, e perguntou por que tanto empenho em fazer dele um acadêmico.
— Simples, Visconde. Com você lá dentro podemos fazer a maior bagunça juntos. Podemos tomar o chá das cinco às quatro horas e não deixar nem uma migalhinha. Na hora dos discursos, podemos dormir e roncar bem alto pra deixar o acadêmico sem graça. Ah, tanta coisa divertida se pode fazer na Academia!
O Visconde não achou a mínima graça naquela história, e começou a passar a limpo tudo o que tinha escrito. Emília logo protestou:
— Não tem que passar nada a limpo, Visconde! — disse, tirando as memórias das mãos do Visconde. — Está muito bom assim. Agora eu vou me despedir dos meus leitores.
— Nunca vi escritor se despedir dos leitores!
— Isso é porque os escritores são muito mal-educados. Os leitores passam horas lendo os livros, às vezes são obrigados a ler, e os autores nem agradecem! Um bando de mal-educados. Bom, agora, bico calado pra eu me concentrar.

Respeitável público, até um dia. Espero que vocês tenham gostado das memórias de Lobato. É claro que algumas partes devem ter sido muito maçantes, e vocês devem ter tirado algumas dúzias de cochilos. O problema é que o Visconde, que me ajudou um pouquinho, adora se arrastar e não vai direto ao assunto. Fala, fala e não diz nada. Mas as partes boas, divertidas e engraçadas que foram escritas por mim, é claro, salvam esse livro do encalhe nas prateleiras. No mais, um abraço e até a próxima!

Emília, Marquesa de Rabicó

O Visconde ficou possesso com aquela história e resolveu partir para o ataque:
— Pensando bem, achei essa sua idéia muito interessante. — Pegou as memórias das mãos de Emília e começou a escrever.

Leitores, até logo. Espero muitíssimo que vocês tenham gostado de conhecer a vida do famoso escritor Monteiro Lobato. Sei que algumas partes são bastante esquisitas, atrapalhadas e confusas, mas é que a Emília, que me ajudou um pouquinho, é muito mentirosa e adora inventar coisas que nunca aconteceram. Mas eu sei que a minha parte, a mais séria, a mais fundamentada, a mais científica, vai salvar esse livro do bolor das prateleiras. Um abraço e até a próxima!

Visconde de Sabugosa

Emília estava enfurecida, queria esganar o Visconde:
— Visconde, o que que você está pensando? Essa sua despedida não vai sair no livro!
— Ora, por quê? Eu também sou autor dessas memórias e quero me despedir, sim, senhora!
— Ah, é?
— É.
— Então depois nós vamos fazer uma enquete entre os leitores para saber quais são as partes mais divertidas do livro, e é claro que eu vou ganhar!
— Vamos ver!
Emília e o Visconde ficaram discutindo um tempão. Quando Dona Benta e Tia Nastácia apareceram, eles obrigaram as velhas a ler o livro todo de uma vez. Quando elas iam falar o que acharam, a boneca e o sabugo estavam tão cansados de inventar, pesquisar, escrever e brigar que dormiam a sono solto.


Cronologia

1882 — José Bento Monteiro Lobato nasce em Taubaté, São Paulo.
1900 — Matricula-se na Faculdade de Direito de São Paulo.
1904 — Forma-se advogado.
1907 — É nomeado promotor em Areias, São Paulo.
1908 — Casa-se com Maria Pureza Natividade.
1911 — Falece o Visconde de Tremembé, avô de Lobato. Este recebe como herança a Fazenda Buquira, onde vai morar com a família.
1917 — Vende a Fazenda Buquira e vai morar em São Paulo.
1918 — Publica o livro “Urupês”, edição da “Revista do Brasil”.
1919 — Funda a Editora Monteiro Lobato & Cia.
1921 — Pela Monteiro Lobato & Cia, publica “Narizinho Arrebitado”.
1925 — A editora do escritor pede falência.
1925 — Lobato funda a Companhia Editora Nacional, com Otales Marcondes Ferreira.
1927 — Lobato vai para Nova York como adido comercial brasileiro.
1931 — Retorna ao Brasil e desenvolve campanha pela exploração do minério de ferro.
1932 — Funda a Companhia Petróleo do Brasil.
1933 — Publica “História do mundo para crianças”, pela Companhia Editora Nacional.
1936 — Também pela Companhia Editora Nacional publica “Memórias da Emília”.
1941 — Fica preso por motivos políticos durante três meses.
1942 — Publica “A chave do tamanho”, pela Companhia Editora Nacional.
1944 — Funda a Livraria Editora Brasiliense.
1946 — Vai morar na Argentina, onde seus livros fazem muito sucesso.
1948 — Morre em São Paulo.



Sobre a Autora

Luciana Sandroni nasceu em 1962, no Rio de Janeiro, cidade em que vive até hoje — mas, para a escritora Ana Maria Machado, Luciana "seguramente morou no Sítio do Pica-Pau Amarelo quando pequena". Ana Maria tem razão: o lugar onde Luciana costumava passar as férias, um sítio do avô, na ilha Itucuruçá, no litoral do estado do Rio de Janeiro, era mesmo bem parecido com o Sítio do Pica-Pau Amarelo. A avó ficava contando histórias à luz do lampião, e quando Luciana ouviu pela primeira vez a Viagem ao céu, de Monteiro Lobato, ficou com uma vontade danada de ir para a Lua. Começam aí as “Memórias de Lobato” contadas neste livro.
Autora premiada, Luciana já escreveu “Ludi vai à praia, Ludi na TV, Ludi na Revolta da Vacina, Memórias da Ilha, Gata menina, Falta um pé” e “Manuela e Floriana. Minhas memórias de Lobato” recebeu o prêmio Jabuti 1998 de literatura infantil e o prêmio Melhor para Criança da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, além de ter sido indicado por essa entidade para a Lista de Honra 2000 do IBBY (Conselho Internacional para o Livro Infantil). Dela, a Companhia das Letrinhas publicou “O Mário que não é de Andrade” (2001), sobre a vida do escritor modernista Mário de Andrade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

DUVIDAS OU CRITICAS ENTRE EM CONTATO OU DEIXE UM COMENTÁRIO LOGO ABAIXO!