segunda-feira, 13 de junho de 2011

Deixa que Eu Conto




Deixa que Eu Conto

Carlos Drummond de Andrade; Dalton Trevisan; Domingos Pellegrini; Fernando Sabino; Ignácio de Loyola Brandão; Lygia Fagundes Telles; Machado de Assis; Moacyr Scliar







Sabor de infância

Este livro reúne oito contos, de oito grandes escritores brasileiros. São histórias com sabor de infância. A maioria tem crianças como personagens: um garoto fascinado com os poderes de uma tecla de computador, uma menina encantada com sua primeira minhoca, um menino que fala coisas que ninguém sabe de onde ele tirou.
Às vezes há uma turma inteira, como a que apronta com o Papai Noel em "Dezembro no bairro", de Lygia Fagundes Telles. Ou a que planeja falsificar as notas do boletim em "Os terroristas", de Moacyr Scliar.
Só em dois contos — justamente o primeiro e o último desta antologia — não há crianças entre os personagens principais. São "O homem nu", de Fernando Sabino, e "História de uma fita azul", de Machado de Assis.
Mas, de certa forma, esses contos também estão ligados à infância. Que criança nunca teve medo de passar vergonha na frente de outras pessoas, ou não sentiu a aflição de perder um objeto importante?
O fascínio do conto está justamente nisso: nele o leitor pode encontrar a si mesmo, de um modo que nunca tinha imaginado. Mas alguém imaginou: o contista.

Os editores


Sumário

O HOMEM NU
Fernando Sabino

O LEÃO
Dalton Trevisan

SEM ? É IMPOSSÍVEL PERGUNTAR
Ignácio de Loyola Brandão

OS TERRORISTAS
Moacyr Scliar

DEZEMBRO NO BAIRRO
Lygia Fagundes Telles

A INCAPACIDADE DE SER VERDADEIRO
Carlos Drummond de Andrade

A PRIMEIRA MINHOCA
Domingos Pellegrini

HISTÓRIA DE UMA FITA AZUL
Machado de Assis

EM poucas palavras



O HOMEM NU
Fernando Sabino

Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.
Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouviu lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço de escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um “ballet” grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão.
Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava.
Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada:
"Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente, e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.


Fernando Sabino — Mineiro de Belo Horizonte, nasceu em 1923 e nunca deixou de ser menino. Volta e meia faz alguma molecagem, como tocar bateria, uma de suas atividades preferidas. Mas ele gosta mesmo é de escrever romances, contos e crônicas.



O LEÃO
Dalton Trevisan

A menina me leva diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Velho e doente, não está preso em grades de ferro. Foi solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento (**) ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: pernas reumáticas, juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados — sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, fossem lágrimas.

(**) Castigo; punição.

Observei em volta: todos adultos, sem contar a menina.
Apenas para nós o leão conserva o antigo prestígio – as crianças ao redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o bicho tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se de pé.
Chega-se um piá (““1) e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: estremece a grama a seus pés. Simula ignorar a provocação e mastiga com dificuldade, no canto da boca, um pedaço de carne. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.

(““1) Menino, na região Sul do Brasil.

— Ele não tem dente?
— Tem sim, não vê? Não tem é força de morder.
Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da derrota.
Está velho, artrítico, não se agüenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim.
Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.
O leão abriu a bocarra de poucos dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor elevou-se aos trancos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de fordeco (**) antigo.
Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão trovejou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.

(**) Automóvel fabricado pela Ford no início do século XX.


Dalton Trevisan — Com frases curtas e diretas, seus contos falam das pequenas tragédias do cotidiano. Nascido em 1925, esse curitibano não gosta muito de dar entrevistas e raramente tira fotos. Por isso, para não contrariá-lo, não colocamos seu retrato aqui.









SEM ? É IMPOSSÍVEL PERGUNTAR
Ignácio de Loyola Brandão

Serginho olhou para o teclado e apertou a tecla 2.
Em seguida, digitou o shift e apertou o 2.
Apareceu o símbolo @. O que será isso?
Depois, ele apertou o shift e o símbolo + surgiu no monitor. Serginho ria, divertia-se com a novidade.
Se não apertasse a tecla shift, em lugar do + aparecia o sinal =.
O que será que queria dizer?
Que o + e o = são iguais, dependendo da tecla shift?
Se quisesse o 5, bastava apertar a tecla 5.
No entanto, ao apertar o shift junto com o 5, o que apareceu na tela foi um símbolo engraçado, %.
Perguntou e o pai explicou que era porcentagem.
— O que quer dizer porcentagem?
O pai ficou calado uns minutos.
— Veja! Você tem o número 100. Mas deseja apenas 10% de 100. Ou seja, você deseja apenas 10.
— Por que vou querer 10% de 100?
Era uma boa pergunta, o pai ficou de responder no dia seguinte, estava atrasado para o trabalho. Serginho teve certeza de que o pai não sabia o que era porcentagem e ficou alegre. Tão bom descobrir que o pai da gente não sabe todas as coisas do mundo. Assim fica igual à gente. Havia meninos cujos pais sabiam tudo, faziam tudo, podiam tudo.
Eram meninos chatos, pentelhos, pareciam os pais. Ou será que eram mentirosos?
Todavia, Serginho não estava preocupado com nada disso. Tinha descoberto as mágicas do teclado, as estranhezas que podia fazer com ele.
Ao apertar o shift e o 3, surgia uma gradinha. Assim: #.
O que seria? Para que serve? Para fazer uma jaula? Para prender um mosquito? A questão era: para que servem as coisas, os sinais diferentes que a gente pode produzir no teclado de um computador?
Serginho gostou do 8 misturado ao shift. Ele produzia uma estrelinha simpática “.
Aproveitou, fez um monte, uma linha inteira
““““““““““““““““““““““““““““““““““
Já o 6 com o shift fazia surgir um chapeuzinho ^. Serginho não teve dúvidas. "Vou ter uma chapelaria", pensou.
^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^
Havia uma maçãzinha, ele apertou, nada aconteceu.
Ficou desapontado. Imaginou que sairiam maçãs, igual à^máquina de refrigerantes que havia na lanchonete da esquina.
Apertou o 1 sozinho. Nada se passou. Quando apertou o 1 com o shift, viu o sinal !.
Quando o pai chegou, ele perguntou o que era.
— Isso é uma exclamação.
— E o que é uma exclamação?
Como explicar uma exclamação?
— Olhe, vou exclamar! Assim você saberá o que é a exclamação.
Então, disse, bem alto:
— Puxa! Meu deus! Ora! Nem me diga!
Tudo com ênfase, firmeza, exclamativo.
— Entendeu?
— Não!
O pai aproveitou:
— Viu? Esse não que você disse foi uma exclamação! Deu para sacar?
— Ah, uma exclamação é um não bem forte?
— A exclamação é o contrário da interrogação.
— E o que é interrogação?
— É uma pergunta.
— Quer dizer que a exclamação é uma não-pergunta?
O pai disse que precisava ir trabalhar.
Serginho apertou a tecla que ficava perto do shift e parecia um tracinho caindo, bêbado. Saiu no monitor um ?.
O que é esse pauzinho torto?, pensou. Parece um corcunda!
O irmão mais velho, de 17 anos, passou com o skate nas mãos.
— Sabe o que é isso, Ciro?
— Sei, uma interrogação!
Apesar de brigar muito com o irmão, Serginho gostava dele, admirava. Ficou feliz, ia saber o que é uma interrogação.
— O que é interrogação?
— Sabe, é a coisa que você precisa quando vai fazer uma pergunta. Sem ela você não pode perguntar, ninguém vai saber que é pergunta.
— E a exclamação?
— É quando você exclama.
— E quando exclamo?
— Quando você diz puuuuuxxxxaaaaa!
— Puuuuuuuuuxxxxxxaaaaa, tão fácil!
Serginho tremeu. Que maravilha! Coisa mais incrível. Se não existisse o ? ninguém poderia perguntar. Como viver sem perguntar? Todo mundo sabe que para ter o sinal ? é preciso apertar o shift e o tracinho caindo? Ciro saiu, estava atrasado, deixando Serginho intrigado. Que coisa engraçada.
Quer dizer que se eu não tiver um ? não posso fazer uma pergunta? E se não existisse o shift no teclado, não poderíamos perguntar? Estava achando tudo fascinante. O pai tinha trazido o computador, presente para os filhos, os mais velhos começavam a precisar para trabalhos da escola, para a internet, a irmã queria namorar por meio dele, a mãe desejava planejar o orçamento familiar, era uma família organizada.
O computador tinha chegado na noite anterior e Serginho desde manhã estava tentando decifrar mistérios. Era divertido, complicado. Acima de tudo, mágico. Ele podia digitar uma letra (ainda que não soubesse que a palavra era digitar) e colocá-la fechada dentro de duas cercas (8), podia criar um mundo de estrelas “, de +, de chapéus ^.
Não sabia ainda o que fazer com tudo, mas descobriria.
Teria de ser sozinho, o pai mostrava não ter paciência. Ou talvez não soubesse. Porque o computador parecia remeter a coisas da vida que não tinham explicações fáceis.
Igual aquela vez em que perguntara ao pai:
— O que é vida?
Por que não se vê o ar?
Quando nasceram as letras?
Por que a água molha?
Por que o número 7 é o 7 e não o 8, e o 9 é 9 e não o 2?
Como a voz vem pelo telefone?
Serginho estava descobrindo que a vida e o computador abrigam coisas que os adultos não sabem, não conhecem, não explicam. Que a vida e o computador têm perguntas sem respostas. Mas que respostas existem e estão dentro do computador e das pessoas.
Disposto a descobrir, ele começou a apertar todas as teclas:
“Caps lock, return, shift, tab, clear, help, home, page up, page down, control, option”
Estranhas palavras. Quem falava assim? Língua de computador. Encheu o monitor de números, símbolos, signos, letras.
E aí viu uma tecla delete.
Apertou.
Tudo sumiu, ficou o branco.
O computador tinha engolido suas coisas de volta, mas estava pronto a devolver.
Devolver seus mistérios, sua mágica, o encantamento do shift, essa tecla solitária que produz tanta diferença.


Ignácio de Loyola Brandão — Paulista de Araraquara, nasceu em 1936. Quando aprendeu a ler, percebeu que estava ganhando inúmeros presentes: todos os livros da biblioteca de seu pai. De tanto gostar de ler, começou a escrever romances, crônicas e contos. Atualmente, vive em São Paulo.

OS TERRORISTAS
Moacyr Scliar

Era um professor duro, exigente — e implacável. As provas eram feitas sem aviso prévio. Todos os trabalhos valiam nota e eram corrigidos segundo os critérios mais rigorosos. Resultado: no fim do ano quase todos os alunos estavam à beira da reprovação. As notas — que ele anotava cuidadosamente no livro de chamada — eram as mais baixas possíveis.
O que fazer? Reuniam-se todos os dias no bar em frente ao colégio para discutir a situação, mas nada lhes ocorria. Até que um deles teve uma idéia brilhante.
O livro de chamada. A solução estava ali: tinham de se apossar do livro de chamada e mudar as notas. Um 0 poderia ser transformado em 8. Um 1 poderia virar 7 (ou 10, dependendo do grau de ambição).
O problema era pegar o livro, que o professor não largava nunca — nem mesmo para ir ao banheiro. Aparentemente, só uma catástrofe poderia separá-los.
Recorreram, pois, à catástrofe. Um dos alunos telefonou do orelhão em frente ao colégio, avisando que havia um princípio de incêndio na casa do professor. Avisado, o pobre homem saiu correndo da sala de aula — deixando sobre a mesa o famigerado livro de presenças.
Acreditareis se eu disser que ninguém tocou no livro?
Ninguém tocou no livro. Os rapazes se olhavam, mas nenhum deles tomou a iniciativa de mudar as notas. Às vezes a consciência pesa mais que a ameaça da reprovação.


Moacyr Scliar — Costuma dizer que é perfeccionista: procura sempre a palavra exata, a frase perfeita. Essa característica está nas obras desse gaúcho de Porto Alegre, nascido em 1937. Ele é médico, e ainda assim encontra tempo para escrever contos, ensaios e romances. Vários deles premiados.



DEZEMBRO NO BAIRRO
Lygia Fagundes Telles

O cinema no porão da nossa casa não tinha dado certo porque antes mesmo do intervalo o Pedro Piolho pôs-se a berrar que não estava enxergando nada, que aquilo tudo era uma grandessíssima porcaria. Queria o dinheiro de volta. Os outros meninos também começaram a vaiar, ameaçando quebrar as cadeiras. Foi quando apareceu minha mãe mandando que toda a gente calasse a boca. E exigindo que devolvêssemos o dinheiro das entradas. Proibiu ainda que fizéssemos outras sessões iguais. E levou a cesta de pão que eu segurava no colo, estava combinado que no intervalo eu devia sair anunciando “Balas, bombons, chocolates”!... Embora houvesse na cesta apenas um punhado de rebuçados (**) de Lisboa.

(**) Caramelo; bala.

— Você não presta como chefe — disse meu irmão ao Maneco. — Com que dinheiro agora vamos fazer o presépio? Eu avisei que o projetor não estava funcionando. Não avisei?
Maneco era o filho do Marcolino, um vagabundo do bairro. Magro e encardido, tinha os cabelos mais negros que já vi em minha vida.
— Mas só falta comprarmos o céu — retrucou o Maneco. — Papel de seda azul para o céu e o papel prateado para as estrelas, eu já disse que faço as estrelas. Não fiz da outra vez?
— Não quero saber de nada. Agora o chefe sou eu.
— É o que vamos decidir lá fora — ameaçou Maneco avançando para o meu irmão.
Foram para a rua. Em silêncio seguimos todos atrás. A luta travou-se debaixo da árvore, uma luta desigual porque meu irmão, que era um touro de forte, logo de saída atirou Maneco no chão e montou em cima. Mordeu-lhe o peito.
— Pede água! Pede água!
Foi aí que apareceu o Marcolino. Agarrou o filho pelos cabelos, sacudiu-o no ar e deu-lhe um bofetão que o fez rodopiar até se estender no meio da calçada.
— Em casa a gente conversa melhor — disse o homem apertando o cinto das calças. A noite estava escura mas mesmo assim pudemos ver que ele estava bêbado. — Vamos embora, anda!
Maneco limpou na mão o sangue do nariz. Seus cabelos formavam uma espécie de capacete negro caindo na testa até as sobrancelhas. Fechou no peito a camisa rasgada e seguiu o pai.
— Os meninos já entraram? — perguntou minha mãe quando me viu chegar.
— Estão se lavando lá no tanque.
Ela ouvia uma novela no rádio. E cerzia meias.
— Que é que vocês estavam fazendo?
— Nada...
— O Maneco estava com vocês?
— Só um pouco, foi embora logo.
— Esse menino é doente e essa doença pega, já avisei mil vezes! Não mandei se afastarem dele, não mandei? Um pobre de um menino pesteado e com o pai daquele jeito...
— É que o céu do nosso presépio queimou, mãe! Não sei quem acendeu aquela vela e o céu pegou fogo. O Natal está chegando e só ele é que sabe cortar as estrelas, só ele é que sabe.
— Vocês andam impossíveis! Continuem assim e veremos se vai ter presente no sapato.
Já sabíamos que o Papai Noel era ela. Ou então, o pai, quando calhava de voltar das suas viagens antes do fim do ano. Mas ambos insistiam em continuar falando no santo que devia descer pela lareira, a tal lareira que por sinal nunca tivemos. Então a gente achava melhor entrar no jogo com a maior cara-de-pau do mundo. Eu chegava ao ponto de escrever bilhetinhos endereçados a Papai Noel pedindo-lhe tudo o que me passava pela cabeça. Minha mãe lia os bilhetes, guardava-os de novo no envelope e não dizia nada.
Já meus irmãos, mais audaciosos, tentavam forçar o cadeado da cômoda onde ela ia escondendo os presentes: enfiavam pontas de faca nas frestas das gavetas, cheiravam as frestas, trocavam idéias sobre o que podia caber lá dentro e se torciam de rir com as obscenidades que prometiam escrever nas suas cartas. Mas quando chegava dezembro, nas vésperas da grande visita, ficavam delicadíssimos. Faziam aquelas caras de piedade e engraxavam furiosamente os sapatos porque estava resolvido que Papai Noel deixaria uma barata no sapato que não estivesse brilhando.
Nesse Natal pensamos em ganhar algum dinheiro com o tal cinema no porão.
Mas o projetor não projetava nada, foi aquele vexame. Restava agora o recurso do presépio com entrada paga, eu ficaria na porta chamando os possíveis visitantes com minha bata de procissão e asas de anjo.
— E o céu? — lembrou meu irmão lançando um olhar desconfiado na direção de Maneco. — Como vai ser o céu?
Estávamos sentados nos degraus de pedra da escadaria da igreja. Meus irmãos tinham ido me buscar depois da aula de catecismo e agora tratávamos dos nossos assuntos, tão pasmados quanto as moscas estateladas em nosso redor, tomando sol. Pareciam tão inertes que davam a impressão de que poderíamos segurá-las pelas asas. Mas sabíamos que nenhum de nós prenderia qualquer uma delas assim naquela aparente abstração.
— Eu já prometi que faço as estrelas, dou o papel prateado das estrelas — disse Maneco riscando com a ponta da unha as pernas magras, com marcas de cicatrizes. Baixou a cara amarela. — Já andei tirando areia de uma construção, está num caixotinho lá em casa, uma areia branca, limpa. Tem areia à beça.
— Então você dá o papel.
— Dou o prateado das estrelas, estrela tem que ser prateada. O papel azul do céu é com vocês que já estou dando muito.
Confabulamos em voz baixa. E ficou decidido que no dia seguinte iríamos catar alguma coisa num palacete vago da avenida Angélica, na hora em que o vigilante devia sair para almoçar. Mas o Maneco não apareceu. Durante três dias esperamos por ele.
— Ficou com medo — disse meu irmão. — É um covarde, um besta.
O Polaquinho protestou:
— Mas ele está doente, não pode nem se levantar. Meu pai acha que ele vai morrer logo.
— Não interessa, prometeu e não cumpriu, é um covarde. Vamos nós e pronto.
Entramos pela janela dos fundos, que estava aberta, enfiamos numa sacola de feira todas as lâmpadas e maçanetas de porta que pudemos desatarraxar e fugimos antes que o vigilante voltasse. Quando chegamos em casa, fomos reto para o porão e abrimos a sacola. A verdade é que longe do palacete, isoladas dos grandes lustres de cristal e daquelas portas trabalhadas, as lâmpadas e maçanetas tinham perdido todo o prestígio: vistas assim de perto, não passavam de maçanetas gastas. E de um monte de lâmpadas empoeiradas e que talvez não se acendessem nunca. Esfreguei na palma da mão a mais escura delas: e se fosse a lâmpada mágica de Aladim? O que eu pediria ao esfumaçado gênio de calças bufantes e argolas de ouro?
— Depressa, gente, depressa! Tem um Papai Noel lá na loja do Samuel — anunciou o Marinho chegando quase sem fôlego.
— Um Papai Noel de verdade? Na loja do Samuel? Deixe de mentira...
— Mentira nada! Venham depressa que ele está lá com a barba branca, a roupa vermelha, juro que é verdade!
Um Papai Noel na loja do Samuel, a loja mais mambembe do bairro?
— Se for mentira, você me paga — ameaçou o Polaquinho encostando o punho fechado no queixo do Marinnho.
— Quero ficar cego se estou mentindo!
Esse mesmo juramento ele fazia quando contava as piores mentiras. Mas o fato é que já estávamos há muito tempo ali parados diante da sacola aberta, sem nos ocorrer um destino a dar àquilo tudo. Era preciso fazer outra coisa. Fomos atrás do Marinho, que ia falando na maior agitação, descrevendo o capuz vermelho, a bata debruada de algodão branco, como aparecia nas ilustrações. Quando dobramos a esquina, ficamos de boca aberta, olhando: lá estava ele de carne e osso, a se pavonear de um lado para outro sob o olhar radiante de Samuel, na porta da loja. Fomos nos aproximando devagar. Sacudindo um pequeno sino dourado, o Papai Noel alisava a barba postiça e dizia gracinhas ao filho de um tipo que parecia ter dinheiro.
— Não quer encomendar nada a este Papai Noel? Vamos, queridinho, faça seu pedido... Uma bola? Um patinete?
— Estou conhecendo esse cara — resmungou o Polaquinho apertando os olhos. — Já vi ele em algum lugar...
Sentindo-se observado, o homem deu-nos as costas enquanto estendia a mão enluvada na direção do menino. Fizemos a volta até vê-lo de frente. Foi o bastante para o homem esquivar-se de novo, fingindo arrumar os brinquedos dependurados na porta. Essa segunda manobra alertou-nos. Fomos nos aproximando assim com ar de quem não estava querendo nada. O queixo e a boca não se podia ver sob o emaranhado do algodão da barba. O gorro vermelho também escondia toda a cabeça. Mas, e aqueles ombros curvos e aquele jeito assim balanceado de andar?... Era um conhecido, sem dúvida. Mas quem? E por que nos evitava, por quê?!
Penso agora que se ele não tivesse disfarçado tanto, não teríamos desconfiado de nada: seria mais um Papai Noel como dezenas de outros que víamos andando pela cidade. Mas aquela preocupação de se esconder acabou por denunciá-lo. Ficamos na maior excitação: ele estava com medo.
Nunca nos sentimos tão poderosos.
— Esse filho-da-mãe é aqui do bairro — cochichou meu irmão. — Dou minha cabeça a cortar como ele é daqui do bairro.
Polaquinho olhava agora para os pés dele, para aqueles sapatos deformados sob as perneiras de oleado preto fingindo bota. Os sapatos! Aqueles sapatos velhos, sapatos de andarilho, eram a própria face do homem. Jamais sapato algum acabou por adquirir tão fielmente as feições do dono: era o pai de Maneco.
— Marcolino!
Ele voltou-se como se tivesse sido golpeado pelas costas. Desatamos a rir e a gritar, era o malandro do Marcolino fazendo de Papai Noel, era o Marcolino!...
— Marcolino, eh! Marcolino!... Tira a barba, Marcolino!
A alegria da descoberta nos fez delirantes, pulávamos e cantávamos aos gritos, fazendo roda, de mãos dadas, "Mar-co-li-no! Mar-co-li-no!..."
Em vão ele tentou prosseguir representando o seu papel. Rompendo o frágil disfarce do algodão e dos panos, sentimos sua vergonha. Sua raiva. Duas velhas da casa vizinha abriram a janela e ficaram olhando e rindo.
— Molecada suja! — gritou o Samuel saindo da loja. Sacudiu os punhos fechados. — Fora daqui, seus ladrõezinhos! Fora!
Fugimos. Para voltar em seguida mais exaltados, com Firpo que apareceu de repente correndo e latindo feito louco, investindo às cegas por entre nossas pernas. Gritávamos compassadamente, com todas as forças:
— Mar-co-li-no! Mar-co-li-no!...
Ele então arrancou a barba. Arrancou o gorro, arrancou a bata e atirou tudo no chão. Pôs-se a pisotear em cima, a pisotear tão furiosamente que o Samuel não pensou sequer em impedir, ficou só ali parado, olhando. E dessa vez o homem não tinha bebido, era raiva mesmo, uma raiva tamanha que chegou a nos assustar, quando vimos sua cara amarfanhada, branca. Em meio ao susto que nos fez calar, ocorreu-me pela primeira vez o quanto o Maneco era parecido com o pai quando ficava assim furioso, ah, eram iguais aqueles capacetes de cabelo desabando até as sobrancelhas negras. Quando se cansou de pular em cima da fantasia, foi-se embora naquele andar gingado, a fralda da camisa fora da calça, os sapatões esparramados.
Samuel entrou de novo na loja. Fecharam-se as janelas. Firpo saiu correndo, levando a carapuça vermelha nos dentes, enquanto o vento espalhava o algodão da barba por todo o quarteirão. Polaquinho apanhou alguns fiapos e grudou-os com cuspe no queixo mas ninguém achou graça. Voltamos à nossa sacola de maçanetas e lâmpadas.
No dia seguinte, um outro Papai Noel mais baixo e mais gordo passeava diante da loja. Olhou-nos com ar ameaçador mas seguimos firmes, esse nós não conhecíamos. Depois do jantar, meu irmão instalou-se em cima da árvore na calçada, diante da nossa casa. Abriu a folhagem e ficou olhando lá de cima.
— Boca-de-forno (**)!
— Forno! — repetimos fazendo continência.
— Fareis tudo o que o vosso mestre mandar?
— Faremos com muito gosto!
— Quero que vocês entrem no porão do Maneco, gritem duas vezes Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! e voltem correndo. Já!
Saímos em disparada pela rua afora. O portão do cortiço estava apenas cerrado. Duas pretas gordas conversavam refesteladas em cadeiras na calçada. Empurramos devagarinho a portinhola carcomida. Entramos.
E paramos assustados no meio do porão de paredes encardidas e trastes velhos amontoados nos cantos. Sabíamos que eles eram pobres, mas assim desse jeito? Maneco estava sozinho, deitado num colchão com a palha saindo por entre os remendos. Mal teve tempo de esconder qualquer coisa debaixo do lençol. Tinha na mão uma tesoura, devia estar cortando o papel que escondeu.

(**) Brincadeira em que uma criança, o "mestre", distribui tarefas para as outras.

Sob a luz débil da lamparina em cima do caixotinho ele me pareceu completamente amarelo, o cabelo negro mais crescido fechando-lhe a cara.
— Seus traidores! — gritou com voz rouca. — Que é que vocês querem aqui, seus traidores! Traidores!
Morreu na semana seguinte, foi essa a última vez que o vimos.
Fomos saindo em silêncio e de cabeça baixa. Só eu olhei ainda para trás.
Ele fungava por entre as lágrimas enquanto procurava esconder debaixo do lençol a ponta de uma estrela de papel prateado.


Lygia Fagundes Telles — Nascida em 1923, fez faculdade de direito, educação física e pedagogia. Mas ficou famosa mesmo como escritora.
Seus romances e contos marcantes a colocaram na disputada Academia Brasileira de Letras. Vive em São Paulo e seu talento para escrever narrativas sensíveis continua afiado como nunca.



A INCAPACIDADE DE SER VERDADEIRO
Carlos Drummond de Andrade

Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência (**) cuspindo fogo e lendo fotonovelas.

(**) Soldados que acompanhavam Dom Pedro I no momento do Grito da Independência.

A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
— Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.


Carlos Drummond de Andrade — Quando criança, tinha fama de distraído.
Mas é que estava observando a realidade para transformá-la em palavras.
Nascido em Itabira (MG) em 1902, foi farmacêutico, funcionário público e jornalista, sem nunca deixar a literatura de lado. Escreveu contos, crônicas e poesia. Morreu em 1987.




A PRIMEIRA MINHOCA
Domingos Pellegrini

O pai pega a filha na escola e ela, mal pega na mão, pergunta se ele conhece minhoca.
— É apelido de alguém?
— Não, pai, é um bichinho que vive na terra, parece uma cobrinha mas não é cobra.
— Eu sei, conheço minhoca — vão de mãos dadas. — Nenhuma especialmente, mas conheço, quer dizer, conheço assim como todo mundo conhece, mas não sou nenhum minhocólogo.
— Que que é isso, pai?
— É o especialista em minhoca, mas não conta pra ninguém, fica só entre nós, tá?
Venta com cheiro de chuva, ele olha para o céu escuro e apressa o passo, os lápis chacoalham na mochila dela.
(Chovia, os meninos recitavam "engorda, minhoca, peixe morre pela boca" e "minhoca dura, minhoca mole, minhoca boa é a que peixe engole". E ele recitava os versinhos como todos os meninos, e cortava uma vara de taquara, deixando secar ao sol, botava linha na vara e chumbada e anzol na linha, e ia com os outros para o rio. Mas, enquanto eles cavocavam a terra ainda úmida, para pegar minhocas, ele já começava a pescar com milho-verde ou bolinhas de macarrão.
Ganhava tempo, enquanto os outros cavocavam, e sempre ia mesmo precisar de tempo: os peixes preferiam as minhocas. Ele ficava vendo os outros a tirar lambaris e tambiús do rio, enquanto os peixinhos miúdos roíam as bolinhas de macarrão, tão miudinhos que não conseguia fisgar nenhum e, quando fisgou, foi um vexame, o menor peixe de todos os tempos. Já quando iscava com milho, ficava horas olhando a vara sem nenhum belisquinho, embora às vezes, bem às vezes, pegasse um campineiro ou uma piaba.
Só não pegava em minhoca, aquela nojeira remelexente e gosmenta, que os meninos cortavam nos dedos; com os mesmos dedos, com o cheiro de carne e terra das minhocas, os mesmos dedos com que pegavam os sanduíches dos embornais e comiam com gosto, enquanto ele ia pescar longe ou pegar frutinhas no mato, coisa de mais certo resultado.)
— Então você acha uma minhoca pra mim, pai?
Ele vê que o vento levou a cabeça para longe dali, mas o corpo continua a andar apressado com a filha pela mão, entre gente que se abotoa correndo, no vento já em redemoinhos, voam folhas e papéis.
— Pra que a minhoca, posso saber?
— É pra estudar, pai.
Ah, os estudos. A escola. A caminhada do homem para o conhecimento, o abecedário e a raiz quadrada passando de geração para geração. E agora, depois da cebola, das batatas, dos feijões, das frutas, dos ovos e tudo mais que a escola tinha pedido nas últimas semanas para a grande sopa educacional, eis que chegava a fase minhocática.
— Mas por que minhoca, filha, não pode ser besouro, lagartixa?
— Não, pai, minhoca! Minhoca faz bem pra terra, pai, aí a terra dá bastante coisa pra gente comer!
— Eu sei, eu sei.
— Minhoca é importante no mundo, pai!
— Eu sei!
Começa a chover. Ficam na marquise da padaria.
— Chuva é chato, né, pai?
— Pra minhoca é muito bom.
— Por quê, pai?
— Depois te conto, na hora de dormir.
Ao menos isso, não terá de repetir a história do cavalinho que não gostava de cenoura ou qualquer outra. Chove. Passam na enxurrada os papéis que agorinha mesmo voavam.
(Os jornais viram lixo, é seu destino, tudo tem sua natureza. Quem sabe minhocas não mereçam mesmo nojo algum. Por quê, só porque comem terra? Comer fetos — como comemos ovos de aves e peixes — não será piormente nojento? Isto, é claro, pensando bem, embora o nojo não pense, só sinta, não é?)
— Pai, por que minhoca não tem perna?
— Porque debaixo da terra não tem onde andar. Mas você vai conhecer bem minhoca, eu vou achar uma minhoca pra você.
Mas passa a chuva, correm no chuvisqueiro, esquecem. No dia seguinte ela lembra na hora do almoço. E insiste, e choraminga, até ele sair para o quintal, ainda com o gosto de comida na boca, para cavocar minhocas. A primeira minhoca, tonta de tanta luz de repente, se enrola nos dedos, ele solta com nojo, a filha pega, a minhoca parece que até se acalma.
Ele cavoca mais, mais minhocas aparecem.
— Escolhe uma, filha. A maior, né?
— Não, pai, a mais bonita.
Ela aponta uma minhoca avermelhada, com um anel azulado no meio:
— Pode pegar, pai, ela não faz mal.
Ele pega, com calma, fechando a mão sobre a minhoca que se acalma nessa pequena escuridão, e a filha sorri para ele. Depois ele lava as mãos várias vezes. Ela vai para a escola com o potinho de iogurte cheio de terra e a minhoca, como quem leva um troféu. Na janta, ele pergunta como foi a aula com a minhoca.
— A Miminha, pai? Nem precisei dela, a professora usou só uma minhoca pra cortar e mostrar como é por dentro. Aí a gente soltou as outras no jardim.
A mãe pergunta se eles não podem falar de outra coisa às refeições, a menina diz que minhoca não é nojenta, é boa e bonita. A mãe suspira fundo, ela sussurra:
— Foi minha primeira minhoca, pai.
— Foi minha primeira minhoca também, filha.
E depois ficam juntos na janela, vendo a chuva cair do céu, passando pelo nosso mundo para ir molhar o mundo das minhocas.


Domingos Pellegrini — Nasceu em Londrina (PR) em 1949. Filho de um barbeiro e de uma dona de pensão, o que não faltava no cotidiano do menino Domingos eram causos trazidos pelos visitantes. Da infância, além da imaginação fértil, ficou a vontade de passar a outras pessoas a magia de uma história bem contada.



HISTÓRIA DE UMA FITA AZUL
Machado de Assis

I
Marianinha achou um dia na cesta de costura um pedaço de fita azul. Era naturalmente resto de algum cinto ou coisa que o valha. Lembrou-se de bordar na fita dois nomes:
Marianinha e Gustavo.
Gustavo! (interrompe neste ponto o leitor) mas por que Gustavo e não Alfredo, Benedito, ou simplesmente Damião?
Por uma razão muito clara e singela, leitor ignaro: porque o namorado de Marianinha não se chamava Alfredo, nem Benedito, nem Damião, mas Gustavo; não Gustavo somente, mas Gustavo da Silveira, rapaz de vinte e sete anos, moreno, cabelo preto, olhos idem, bacharel aspirante a juiz municipal, tendo sobre todas estas qualidades a de possuir umas oitenta apólices da dívida pública (**).

(**) Títulos do governo, que valem dinheiro.

Amavam-se estas duas criaturas, se assim se pode dizer, de um capricho começado num baile e não sei se destinado a morrer numa corrida. A verdade é que, no curto espaço de três meses, haviam já trocado cinqüenta cartas, todas cheias de protestos de amor até à morte. Gustavo dizia-lhe mais de uma vez que ela era o anjo com que ele sonhara durante toda a vida, e ela retribuía-lhe esta fineza dizendo a mesma coisa, mas com estilo diferente, sendo o mais espantoso deste caso que nem ele nem ela haviam sonhado com nenhum anjo. Acrescentarei até que o jovem Gustavo havia já feito a mesma revelação a quatro namoradas, o que diminui a sinceridade da que fazia agora à quinta. Excluídas, porém, estas e outras flores de retórica, a verdade é que eles pareciam gostar um do outro, e se quiserem saber mais alguma coisa, leiam a novela para diante.
Lembrou-se a Marianinha de bordar o nome do namorado e o seu no pedaço de fita azul: bordou-os com linha de seda branca e com tanta perfeição o fez, que teve vontade de ir mostrar o trabalho à avó. A idéia, porém, de que a Sra. D. Leonarda lhe passaria uma áspera repreensão a demoveu do intento e a obra ficou inédita até passar às mãos do jovem Gustavo.
Não pense a leitora que a Sra. D. Leonarda ignorasse absolutamente o namoro da neta. Oh! não! A Sra. D. Leonarda, além de ser excelente doceira, tinha o olho mais perspicaz deste mundo. Percebeu o namoro e calou-se, a ver (dizia ela) em que paravam as modas (**). Já estava de longa data acostumada a estes romances da neta, e só lastimava não ver o capítulo do fim.

(**) Esperou para ver no que dava (o namoro).

"A culpa é dela, pensava aSra. D. Leonarda. Quem há de querer casar com uma estouvada daquele gênero, que, ainda bem não acabou um namoro, já começa outro?"
Indiretamente, fazia-lhe sentir esta censura toda íntima, dizendo-lhe às vezes:
— O Major Alvarenga (era o defunto esposo da Sra. D. Leonarda) foi o meu primeiro e último namoro. Vi-o num dia de entrudo; casamo-nos logo depois da Páscoa. Hoje as moças gostam de andar de namoro em namoro, sem acabar de escolher um. Por isso muitas ficam para tias.
Ora, é de notar que o bacharel Gustavo caíra-lhe em graça, e que de todos os namorados de Marianinha era este o que mais adequado lhe parecia. Não aprovaria, certamente, a idéia da fita bordada com os dois nomes, porque a Sra. D. Leonarda tinha como teoria que uma moça apenas deve olhar para o namorado; escrever-lhe era já atrevimento, e (usemos os seus próprios termos) profunda imoralidade.
Mas desejava e muito que aquele casamento se fizesse, porque, mais que nenhum outro, o genro lhe parecia de feição.
Com um pouco mais de ardor por parte dos dois namorados, estou certo de que nem escreveria estas páginas, tinham casado, estavam com filhos, vivendo em paz. Não precipitemos, entretanto, os acontecimentos, esperemos ao segundo capítulo.

II

Gustavo foi à casa de D. Leonarda na quinta-feira seguinte, isto é, dois dias depois do dia em que Marianinha acabava de bordar os dois nomes na fita azul.
— Tenho uma coisa para lhe dar, disse a moça.
— Ah! O que é?
— Adivinhe.
— Não posso adivinhar.
— Adivinhe.
— Um par de botões?
— Não.
— Uma flor?
— Não.
— Uma charuteira?
— Não.
— Não posso... Ora, espere... Será?... não... não é.
— Não é o quê?
— Um lenço de assoar.
— Ora! respondeu Marianinha encolhendo os ombros.
E tirou do bolso a fita azul com os dois nomes bordados.
— Bonito! exclamou Gustavo.
— É uma lembrança para não se esquecer de mim.
— Oh! querida! Pois eu hei de nunca esquecer-me de você. Não é você o anjo...
Aqui entrava a quinquagésima edição do sonho que ele não tivera nunca.
Gustavo disfarçadamente beijou a fita azul e guardou-a no bolso, de maneira que o não visse a Sra. D. Leonarda.
Marianinha ficou muito contente com o bom agasalho que tivera a sua lembrança, não menos que com o elogio da obra, tão certo é que o amor não dispensa a vaidade, antes esta é muita vez complemento daquele.
— Que lhe darei eu para que se não esqueça de mim? — disse Gustavo daí a pouco, em ocasião em que pôde murmurar-lhe estas palavras.
— Nada, disse a moça, sorrindo.
— Ama-me então como sempre? perguntou ele.
— Como sempre!
Todo o resto do diálogo foi assim por este gosto, como naturalmente o leitor e a leitora compreendem, se é que já não passaram pelo mesmo, como eu sou capaz de jurar.
Marianinha era muito graciosa, além de bonita. Os olhos eram pequenos e vivos, ela sabia-os mover com muita gentileza.
Não era mulher que do primeiro lance fizesse apaixonar um homem, mas com o tempo tinha o condão de insinuar-se-lhe no coração.
Foi isso justamente o que aconteceu com o nosso jovem Gustavo, cujo namoro durava já mais tempo que os outros.
Começara por brinquedo, e acabara sério. Gustavo foi-se a pouco e pouco sentindo preso nas mãos da moça, de maneira que o casamento, coisa em que não pensara nunca, entrou a surgir-lhe no espírito como a coisa mais desejável e indispensável.
— Afinal, pensava ele, devo acabar casando, e mais vale que seja com uma boa menina como aquela é, alegre, afetuosa, educada... A educação acabá-la-ei eu, e o terreno é próprio para isso; farei dela uma verdadeira esposa.
Com estas disposições, deixou Gustavo as suas habituais distrações, teatros, passeios, ceatas, e todo se entregou ao cultivo do amor. D. Leonarda viu que a assiduidade era maior e concluiu razoavelmente que desta vez iria o barco ao mar. Para animar a pequena falou-lhe na conveniência de casar com pessoa que estimasse, e não deixasse de dar outras esperanças ao pretendente.
As coisas foram assim andando de modo que o bacharel assentou de ir pedir a moça à avó por ocasião dos anos dela (a avó), que era a vinte e sete de outubro. Estavam então no dia dez do referido mês. Em novembro podiam estar unidos e felizes.
Gustavo conversou com alguns amigos, e todos lhe aprovaram a resolução, mormente os que freqüentavam a casa de D. Leonarda e não queriam ficar brigados com o futuro neto da viúva do major.
Um dos freqüentadores, comensal antigo, de passagem lhe observou que a moça era um tanto caprichosa; mas não o fez com a idéia de o afastar da pretensão, o que era difícil naquele caso, mas antes por lhe aplanar a dificuldade mostrando-lhe o caminho que devia seguir.
— O coração é excelente, acrescentou este informante; nisto sai à avó e à mãe, que Deus tem.
— Isto é o essencial, disse Gustavo; caprichos são flores próprias da idade; o tempo as secará de todo. Gosto muito dela, e quaisquer que fossem os seus defeitos, casaria com ela.
— Oh, sem dúvida! Pela minha parte desde já lhe afianço que hão de ser felizes.
Tudo corria portanto “comme sur des roulettes” (**). O pedido estava prestes; prestes o casamento. Gustavo imaginou logo um plano de vida, mediante o qual ele seria no ano seguinte deputado, logo depois presidente da província, e um dia alguma coisa mais. A imaginação pintava-lhe a glória e o prazer que daria à sua mulher; imaginava um filhinho, uma casa cercada de laranjeiras, um paraíso...

(**) As mil maravilhas, em francês.


III

Ora, logo na noite do dia dez, estando a conversar com a namorada, esta lhe pergunta pela fita azul. Eram passados seis meses desde a data em que ela lha dera. Gustavo empalideceu; e a razão era que, não estando naquele tempo apaixonado como agora, nunca mais pusera olhos em cima da fita. Murmurou como pôde alguma coisa, que ela não ouviu, nem se lhe deu de ouvir, por haver logo percebido a sua perturbação.
— Naturalmente não sabe onde a pôs, disse ela com ar azedo.
— Ora!...
— Talvez a lançasse à rua...
— Que idéia!
— Estou a ler isso no seu rosto.
— Impossível! A fita está lá em casa...
— Pois bem, veja se a traz amanhã.
— Amanhã? balbuciou Gustavo.
— Perdeu-a já sei.
— Oh! não; amanhã trago-lhe a fita.
— Jura?
— Que criancice! Juro.
O espírito de Gustavo achava-se nessa ocasião na situação de um homem que se deitasse numa cama de espinhos. Virava-se, revirava-se, espinhava-se, e daria cem ou duzentos mil-réis para poder ter a fita ali mesmo no bolso. Queria ao menos ter certeza de que a acharia em casa. Mas não tinha; e o rosto da moça como que lhe anunciava a tempestade de arrufos que o esperaria no dia seguinte se não levasse a fita.
Efetivamente Marianinha não se riu mais nessa noite, Gustavo saiu mais cedo que de costume e foi dali direto como uma flecha para casa.
Não tenho tintas na minha paleta para pintar a cena da investigação da fita, que durou cerca de duas horas e dava para dois capítulos ou três. Uma só gaveta não ficou em casa por examinar, uma só caixa de chapéu, um só escaninho da secretária. Veio tudo abaixo. A fita obstinava-se em não aparecer. Gustavo imaginou que ela estava na saladeira; a saladeira estava vazia, e era o pior que lhe podia acontecer, porque o furioso mancebo atirou-a contra um portal e reduziu-a a cacos.
Os dois criados estavam atônitos; não compreendiam nada; muito menos compreendiam o motivo por que o amo os descompunha, quando eles não tinham notícia nenhuma da fita azul.
Era já madrugada; a fita não dera sinal de si; toda a esperança se dissipara como fumo. Gustavo tomou a resolução de se deitar, que os seus criados acharam excelente, mas que para ele foi perfeitamente inútil. Gustavo não pregou olho; levantou-se às oito horas do dia onze fatigado, aborrecido, receoso de um imenso desastre.
Durante o dia fez algumas investigações relativas à famosa fita; todas elas tiveram o resultado da véspera.
Numa das ocasiões em que estava mais aflito, apareceu-lhe em casa um dos freqüentadores da casa de D. Leonarda, o mesmo com quem tivera o diálogo acima transcrito. Gustavo confiou-lhe tudo.
O Sr. Barbosa riu-se.
Barbosa era o nome do freqüentador da casa de D. Leonarda.
Riu-se e chamou-lhe criança; afirmou-lhe que Marianinha era caprichosa, mas que uma fita era uma coisa de pouco mais que nada.
— Que lhe pode resultar daqui? disse o Sr. Barbosa com um gesto grave. Zangar-se a moça durante algumas horas?
Isso que vale, se ela lhe há de dever a felicidade mais tarde?
Meu amigo, eu não conheço a história de todos os casamentos que se têm feito debaixo do sol, mas creio poder afirmar que nenhuma noiva deixou de casar por causa de um pedaço de fita.
Gustavo ficou mais consolado com estas e outras expressões do Sr. Barbosa, que se despediu daí a pouco. O namorado apenas chegou a noite vestiu-se com o maior apuro, perfumou-se, acendeu um charuto, procurou sair de casa com o pé direito, e enfiou para a casa da Sra. D. Leonarda.
O coração batia-lhe mais fortemente quando subiu a escada.
Vieram abrir-lhe a cancela; Gustavo entrou e achou na sala a avó e a neta, a avó risonha, a neta séria e grave.
Ao contrário do que fazia em outras ocasiões, Gustavo não buscou desta vez achar-se a sós com a moça. Foi esta quem procurou essa ocasião, no que a avó a ajudou muito simplesmente, indo ao interior da casa saber a causa de um rumor de pratos que ouvira.
— A fita? disse ela.
— A fita...
— Perdeu-a?
— Não se pode dizer que esteja perdida, balbuciou Gustavo; mas não a pude achar por mais que a procurasse; e a razão...
— A razão?
— A razão é que eu... sim... naturalmente está muito bem guardada... mas creio que...
Marianinha levantou-se.
— Minha última palavra é esta... Quero a fita dentro de três dias; se não ma der, tudo está acabado; não serei sua!
Gustavo estremeceu.
— Marianinha!
A moça deu um passo para dentro.
— Marianinha! repetiu o pobre namorado.
— Nem mais uma palavra!
— Mas...
— A fita, dentro de três dias!


IV

Imagina-se, não se descreve a situação em que ficou a alma do pobre Gustavo, que deveras amava a moça e que por tão pequena causa via perdido o seu futuro. Saiu dali (desculpem a expressão que não é muito nobre), saiu dali vendendo azeite às canadas (**).

(**) Furioso; irritado.

— Leve o diabo o dia em que vi aquela mulher! Exclamava ele caminhando para casa.
Mas logo:
— Não! ela não tem culpa: o culpado sou eu! Quem me mandou ser pouco zeloso de um mimo dado de tão boa feição? Verdade seja que eu ainda nesse tempo não tinha no coração o que agora sinto...
Aqui parava o moço para examinar o estado do seu coração, que reconhecia ser gravíssimo, a ponto de lhe parecer que, se não casasse com ela, impreterivelmente iria ter à cova.
Há paixões assim, como devem saber o leitor e a leitora, e se a dele não fosse assim, é muito provável que eu não tivesse interesse de contar esta mui verídica história.
Ao chegar à casa procedeu Gustavo a uma nova investigação, que deu o mesmo resultado negativo. Passou a noite como se pode imaginar, e levantou-se de madrugada, aborrecido e furioso consigo mesmo.
Às oito horas levou-lhe o criado o café do costume, e na ocasião em que riscava um fósforo para o amo acender um charuto, aventurou esta conjectura:
— Meu amo chegaria a tirar a fita da algibeira do paletó?
— Naturalmente tirei a fita, respondeu com rispidez o moço; não me lembra se tirei, mas é provável que sim.
— É que...
— É quê?
— Meu amo deu-me há pouco tempo um paletó e pode ser que...
Isto foi um raio de esperança no ânimo do pobre namorado.
Deu um pulo da cadeira em que se achava; quase entornou a xícara no chão, e sem mais preâmbulo perguntou ao criado:
— João! tu vieste salvar-me!
— Eu?
— Sim, tu. Onde está o paletó?
João cravou os olhos no chão e não respondeu:
— Dize! fala! exclamou Gustavo.
— Meu amo há de desculpar-me... Aqui há tempos uns amigos convidaram-me para uma ceia. Eu nunca ceio porque me faz mal; mas nessa noite tive vontade de cear. Havia uma galinha...
Gustavo impaciente bateu com o pé no chão.
— Acaba! disse ele.
— Havia uma galinha, mas não havia vinho. Era preciso vinho. Além do vinho houve quem lembrasse um paio, comida indigesta, como meu amo sabe...
— Mas o paletó?
— Lá vou. Faltava, portanto, algum dinheiro. Eu, esquecendo por um instante os benefícios que recebera do meu amo e sem reparar que uma lembrança daquelas guardava-se para sempre...
— Acaba, demônio!
— Vendi o paletó!
Gustavo deixou-se cair na cadeira.
— Valia a pena fazer-me perder tanto tempo, disse ele, para chegar a esta conclusão! Estou quase certo de que a fita estava no bolso desse paletó...
— Mas, meu amo, aventurou João, não será a mesma coisa comprar outra fita?
— Vai-te para o diabo!
— Demais, nem tudo está perdido.
— Como assim?
— Talvez o homem ainda não vendesse o paletó.
— Que homem?
— O homem do “Pobre Jaques”.
— Sim?
— Pode ser.
Gustavo refletiu um instante.
— Vamos lá! disse ele.
Gustavo vestiu-se no curto prazo de sete minutos; saiu acompanhado do criado e a trote largo caminharam para a Rua da Carioca.
Entraram na casa do “Pobre Jaques”.
Acharam um velho assentado numa cadeira examinando um par de calças que lhe levara um freguês talvez para almoçar nesse dia. O dono da casa oferecia-lhe pelo objeto cinco patacas; o dono do objeto instava por mil e oitocentos.
Afinal cortaram a dúvida, diminuindo o freguês um tostão e subindo o dono da casa outro tostão.
Acabado o negócio, o velho atendeu aos dois visitantes, um dos quais, de impaciente, andava de um lado para outro, a passear os olhos nas roupas com a esperança de encontrar o suspirado paletó.
João era conhecido do velho e tomou a palavra.
— Não se lembra de um paletó que eu lhe vendi há coisa de três semanas? disse ele.
— Três semanas!
— Sim, um paletó.
— Um paletó?
Gustavo fez um gesto de impaciência. O velho reparou no gesto.
Pôs-se a afagar o queixo com a mão esquerda e os olhos no chão a ver se se lembrava do destino que tivera o paletó “introuvable” (**).

(**) Impossível de achar, em francês.

— Lembra-me de que lhe comprei um paletó, disse ele, e por sinal que tinha gola de veludo...
— Isso! exclamou Gustavo.
— Mas creio que o vendi, conclui o velho.
— A quem? perguntou Gustavo desejoso e ansioso ao mesmo tempo de lhe ouvir a resposta.
Antes, porém, que a ouvisse, ocorreu-lhe que o velho podia desconfiar do interesse com que procurava saber de um paletó velho, e julgou necessário explicar que não se tratava de nenhuma carteira, mas de uma lembrança da namorada.
— Seja lá o que for, disse o velho sorrindo, eu nada tenho com isso... Agora me lembro a quem vendi o paletó.
— Ah!
— Foi ao João Gomes.
— Que João Gomes? perguntou o criado.
— O dono da casa de pasto (**) que fica ali quase no fim da rua..
O criado estendeu a mão ao velho e murmurou algumas palavras de agradecimento; quando, porém, voltou os olhos, não viu o amo, que apressadamente se dirigia na direção indicada.

(**) Restaurante barato.


V

João Gomes animava os caixeiros, e a casa regurgitava de gente que comia o seu modesto almoço.
O criado do bacharel conhecia o dono da casa de pasto. Foi direto a ele.
— Sr. João Gomes...
— Olé! você por aqui!
— É verdade; venho tratar de um assunto importante.
— Importante?
— Muito importante.
Ao mesmo tempo lançou um olhar desconfiado para Gustavo que se conservara de parte.
— Não comprou o senhor um paletó em casa do “Pobre Jaques”?
— Não, senhor, respondeu muito depressa o interpelado.
Era evidente que receava alguma complicação com a polícia.
Gustavo compreendeu a situação e interveio para sossegar o ânimo do homem.
— Não se trata de nada que seja grave para o senhor, nem para ninguém, exceto para mim, disse Gustavo.
E contou o mais sumariamente que pôde o caso da fita, o que tranqüilizou efetivamente o espírito do comprador do paletó.
— Uma fita azul, diz V. Sa.? perguntou João Gomes.
— Sim, uma fita azul.
— Achei-a na algibeira do paletó e...
— Ah!
— Tinha dois nomes bordados, creio eu...
— Isso.
— Obra muito fina!
— Sim, senhor, e então?
— Então? Ora, espere... Eu tive esta fita alguns dias comigo... até que um dia... de manhã... não, não era de manhã era de tarde... mostrei-a a um freguês...
Estacou o Sr. João Gomes.
— Que mais? perguntou o criado do bacharel.
— Creio que era o Alvarenga... Era, era o Alvarenga. Mostrei-lha, gostou muito... e pediu-ma.
— E o senhor?
— Eu não precisava daquilo e dei-lha.
Gustavo teve vontade de engolir o dono da casa de pasto.
Como, porém, nada adiantasse com esse ato de selvageria, preferiu fazer indagações relativas ao Alvarenga, e soube que morava na Rua do Sacramento.
— Ele guarda aquilo por curiosidade, observou João Gomes; se lhe contar o que há, estou certo de que lhe entrega a fita.
— Sim?
— Estou certo disso... Até se quiser eu mesmo lhe falo; ele há de cá vir almoçar e talvez a coisa se arranje hoje mesmo.
— Tanto melhor! exclamou Gustavo. Pois, meu amigo, veja se me consegue isso, e far-me-á um grande favor. O João aqui fica para me levar a resposta.
— Não tem dúvida.
Gustavo foi dali almoçar no Hotel dos Príncipes, onde João devia ir ter e dar-lhe conta do que houvesse. O criado demorou-se muito menos, porém, do que pareceu ao ansioso namorado. Já lhe parecia que ele não viria mais, quando a figura de João assomou à porta. Gustavo levantou-se à pressa e saiu.
— Que há?
— O homem apareceu...
— E a fita?
A fita estava com ele...
— Achou-se?
— Estava com ele, porque João Gomes lha tinha dado, como meu amo sabe, mas parece que já não está.
— Inferno! exclamou Gustavo, lembrando-se de um melodrama em que ouvira exclamação análoga.
— Já não está, continuou o criado como se estivesse saboreando estas ânsias do amo; já não está, mas podemos dar com ela.
— Como?
— O Alvarenga é procurador, deu a fita à filhinha do desembargador com quem trabalha. Ele mesmo incumbiu-se de arranjar tudo...
Gustavo perdera de todo as esperanças. A esquiva fita nunca mais lhe tornaria às mãos, pensava ele, e com esta idéia ficou acabrunhado.
João, entretanto, reanimou-o como pôde, afiançando-lhe que achava no Sr. Alvarenga muito boa vontade de o servir.
— Sabes o número da casa dele?
— Ele ficou de ir à casa do meu amo.
— Quando?
— Hoje.
— A que horas?
— Às ave-marias.
Era um suplício fazê-lo esperar tanto tempo; mas, como não havia outro remédio, Gustavo curvou a cabeça e foi para casa, disposto a não sair sem saber o que era feito da encantada fita.


VI

Crudelíssimo foi aquele dia para o mísero namorado, que não podia ler, nem escrever, que só podia suspirar, ameaçar o céu e a terra, e que mais de uma vez ofereceu ao destino as suas apólices por um pedaço de fita.
Dizer que jantou mal, é noticiar ao leitor uma coisa que ele naturalmente adivinhou. A tarde foi terrível de passar.
A incerteza misturava-se à ânsia; Gustavo ardia por ver o procurador, mas receava que nada trouxesse, e que a noite desse dia fosse muito pior que a antecedente. Pior seria, de certo, porque o plano de Gustavo estava feito: atirava-se do segundo andar à rua.
A tarde caiu de todo, e o procurador, fiel à sua palavra, bateu palmas na escada.
Gustavo estremeceu.
João foi abrir a porta.
— Ah! Entre, Sr. Alvarenga! disse ele, entre para a sala; meu amo está à sua espera.
Alvarenga entrou.
— Então que há? perguntou Gustavo depois de feitos os primeiros cumprimentos.
— Há alguma coisa, disse o procurador.
— Sim?
E logo:
— Há de admirar-se talvez da insistência com que procuro esta fita, mas...
— Mas é natural, acudiu o procurador, abrindo a caixa de rapé e oferecendo uma pitada ao bacharel, que com um gesto recusou.
— Então parece-lhe que há alguma coisa? perguntou Gustavo.
— Sim, senhor, respondeu o procurador. Eu tinha dado aquela fita à filha do desembargador, menina de dez anos. Quer que lhe conte a maneira por que isso aconteceu?
— Não precisa.
— Sempre lhe direi que eu gosto muito dela, e ela de mim. Posso dizer que a vi nascer. A menina Cecília é um anjo. Imagine que tem os cabelos louros e está muito desenvolvida...
— Ah! fez Gustavo não sabendo o que havia de dizer.
— No dia em que o João Gomes me deu a fita dizendo-me: "Tome lá o senhor que tem em casa exposição!" (Exposição, chama o João Gomes a uma coleção de objetos e trabalhos preciosos que tenho e vou aumentando...) Nesse dia, antes de ir para casa, fui à casa do desembargador...
Neste ponto entrou na sala o criado João, que, por uma idéia delicada, lembrou-se de trazer uma xícara de café ao Sr. Alvarenga.
— Café? disse este. Não recuso nunca. Está bom de açúcar... Oh! e que excelente café! V. Sa. não sabe como eu gosto de café; bebo às vezes seis, oito xícaras por dia. V. Sa. também gosta?
— Às vezes, respondeu Gustavo em voz alta.
E consigo mesmo:
"Vai-te com todos os diabos! Estás apostado para fazer-me morrer de aflição!"
O Sr. Alvarenga ia saboreando o café, como entendedor, e contando ao bacharel a maneira por que dera a fita à filha do desembargador.
— Ela estava brincando comigo, enquanto eu tirava do bolso alguns papéis para dar ao pai. Com os papéis veio a fita. "Que bonita fita!" disse ela. E pegou na fita, e pediu que lha desse. Que faria V. Sa. no meu caso?
— Dava.
— Foi o que fiz. Se visse como ficou alegre!
O Sr. Alvarenga acabara de tomar o café, ao qual fez um novo elogio; e depois de sorver voluptuosamente uma pitada, continuou:
— Já eu não me lembrava da fita quando o Sr. João Gomes me contou o caso. Era difícil achar a fita, porque isto de crianças, V. Sa. sabe que são endiabradas, e então aquela!
— Está rasgada? perguntou Gustavo ansioso por vê-lo chegar ao fim.
— Parece que não.
— Ah!
— Quando lá cheguei, perguntei com muita instância pela fita à senhora do desembargador.
— E então?
— A senhora do desembargador respondeu-me com muita polidez que não sabia da fita; imagine como fiquei. Chamou-se porém a menina, e confessou que uma sua prima, moça de vinte anos, lhe tirara a fita da mão, logo no dia em que eu lha dei.
A menina chorara muito, mas a prima dera-lhe em troco uma boneca.
Esta narração foi ouvida por Gustavo com a ansiedade que o leitor naturalmente imagina; as últimas palavras, entretanto, foram um golpe mortal. Como haver agora essa fita?
De que maneira e com que razões se iria procurar nas mãos da moça o objeto desejado?
Gustavo comunicou estas impressões ao Sr. Alvarenga, que depois de sorrir e tomar outra pitada, lhe respondeu que dera alguns passos a ver se a fita poderia vir para as suas mãos.
— Sim?
— É verdade! A senhora do desembargador ficou tão penalizada com a ansiedade que eu mostrava, que me prometeu fazer alguma coisa. A sobrinha mora no Rio Comprido; a resposta só pode estar nas suas mãos depois de amanhã, porque eu amanhã tenho muito que fazer.
— Mas virá a fita? murmurou Gustavo com desânimo.
— Pode ser, respondeu o procurador; tenhamos esperanças.
— Com que lhe hei de pagar tantos favores? disse o bacharel ao procurador que se levantara e pegara no chapéu...
— Sou procurador... dê-me alguma causa em que eu possa prestar-lhe os meus serviços.
— Oh! sim! a primeira que me vier agora é sua! exclamou Gustavo, para quem uma causa era ainda objeto puramente mitológico.
O procurador saiu.
— Então, até depois de amanhã? disse João, que ouvira quase toda a conversa, colocado no corredor.
— Sim, até depois de amanhã.


VII

O dia em que o procurador devia voltar à casa de Gustavo era o último do prazo marcado por Marianinha. Gustavo esperou por ele sem sair de casa; não queria aparecer sem estar desenganado ou feliz.
O Sr. Alvarenga não marcara hora. Gustavo acordou cedo, almoçou, e esperou até o meio-dia sem que o procurador desse sinais de si. Era uma hora quando apareceu.
— Há de desculpar-me, disse ele logo ao entrar; tive uma audiência na segunda vara, e por isso...
— E então?
— Nada.
— Nada!
— Ela tem a fita e declara que a não dá!
— Oh! mas isso é impossível.
— Também eu disse isso, mas depois refleti que não há outro recurso senão contentarmo-nos com a resposta.
Que poderíamos nós fazer?
Gustavo deu alguns passos na sala, impaciente e abatido ao mesmo tempo. Tanto trabalho para tão triste fim! Que importava que ele soubesse onde parava a fita, se não podia havê-la às mãos? O casamento estava perdido; unicamente o suicídio.
Sim, o suicídio. Apenas o procurador Alvarenga saiu da casa de Gustavo, este sondou o seu coração, e, mais uma vez, se convenceu de que não podia resistir à recusa de Marianinha senão matando-se.
"Caso-me com a morte!" rugiu ele surdamente.
Outra reminiscência de melodrama.
Assim assentado o seu plano, saiu Gustavo de casa, logo depois das ave-marias (**) e dirigiu-se para a casa de D. Leonarda. Entrou comovido; estremeceu quando deu com os olhos da Marianinha. A moça tinha o mesmo ar severo com que lhe falara a última vez.

(**) As três badaladas do sino de uma igreja, ao entardecer, convocando os fiéis para a reza da ave-maria.

Por onde andou estes três dias? disse D. Leonarda.
— Estive muito ocupado, respondeu secamente o moço e por isso... As senhoras têm passado bem?
— Assim, assim, disse D. Leonarda.
Depois:
"Estes pequenos andam arrufados!" pensou ela.
E posto fosse severíssima em pontos de namoro, todavia compreendia que, para explicar e acabar arrufos, a presença de uma avó era de algum modo prejudicial. Pelo que assentou retirar-se durante cinco minutos (de relógio na mão), a pretexto de ir ver o lenço de tabaco.
Apenas se acharam sós os dois namorados, rompeu o seguinte diálogo a muito custo de ambos, porque nenhum deles queria começar primeiro. Foi Gustavo quem cedeu:
— Não lhe trago a fita.
— Ah! disse a moça com frieza.
— Alguém ma tirou, talvez, porque eu...
— Que faz a polícia?
— A polícia!... Está zombando comigo, creio eu.
— Apenas crê?
— Marianinha, por quem é, perdoe-me se...
Neste ponto teve Gustavo uma idéia que lhe pareceu luminosa.
— Falemos franco, disse ele; eu tenho a fita comigo.
— Sim, deixe ver.
— Não está aqui, mas posso afirmar-lhe que a tenho. Imponho todavia uma condição...
— Impor?
— Pedir. Mostrar-lhe-ei a fita depois que estivermos casados.
A idéia, como a leitora vê, não era tão luminosa como ele pensava; Marianinha deu uma risadinha e levantou-se.
— Não acredita? disse Gustavo meio enfiado.
— Acredito, disse ela; e tanto que aceito a condição.
— Ah!
— Com a certeza de que não a há de cumprir.
— Juro...
— Não jure! A fita está aqui.
E Marianinha tirou da algibeira o pedaço de fita azul com os nomes de ambos bordados a seda, a mesma fita que ela lhe dera.
Se o bacharel Gustavo tivesse visto as torres de S. Francisco de Paula subitamente transformadas em duas muletas, não se admiraria tanto como quando a moça lhe mostrou o pedaço de fita azul.
Só no fim de dois minutos pôde falar:
— Mas... esta fita?
— Silêncio! disse Marianinha vendo entrar a avó.
A leitora naturalmente acredita que a fita fora entregue a Marianinha pela sobrinha do desembargador, e acredita a verdade. Eram amigas; sabiam do namoro uma da outra; Marianinha tinha mostrado à amiga a obra que fazia para dar ao namorado, de maneira que, quando a fita azul caiu nas mãos da pequena, suspeitou naturalmente que era a mesma, e obteve-a para mostrá-la à neta de D. Leonarda.
Gustavo não suspeitara nada disto; estava aturdido. Estava sobretudo envergonhado. Acabava de ser apanhado em flagrante delito de peta e fora desmentido do mais formidável modo do mundo.
Nestas alturas não há de demorar o desfecho. Apresso-me a dizer que Gustavo saiu dali abatido, mas que no dia seguinte recebeu uma carta de Marianinha, em que lhe dizia, entre outras coisas, esta: "Perdôo-lhe tudo!"
Nesse mesmo dia foi pedida a moça. Casaram-se pouco depois e vivem felizes, não direi onde, para que os não vão perturbar na sua lua-de-mel que dura há largos meses.
Desejo o mesmo às leitoras.

Machado de Assis — Neto de escravos, foi uma criança pobre.
Nasceu em 1839 e morreu em 1908, no Rio de janeiro. Superou o preconceito e transformou-se em um dos maiores escritores de todos os tempos. Seus romances, contos, crônicas e peças de teatro são marcados por uma fina ironia.




Em poucas palavras

É impressionante como os contistas conseguem dizer tanta coisa com tão poucas palavras! Nas próximas páginas você vai saber mais sobre este livro, além de entender melhor o que é uma antologia de contos.



CONHECENDO MAIS
Como uma fotografia

Este livro reúne autores bem diferentes, cada um com seu jeito especial de narrar uma história. Seis contos falam de crianças.
Há alguns casos engraçados, como o do menino que tinha tanta imaginação que acabava passando por mentiroso, em "A incapacidade de ser verdadeiro".
Você se lembra? Mas há também momentos bem sérios, de crianças às voltas com o complicado jogo da convivência.
É o caso de "Dezembro no bairro". Nesse conto, os meninos descobrem o pai de um amigo vestido de Papai Noel numa loja da cidade, e começam a atazanar a vida do homem. Só se dão conta do que estão fazendo quando já tinham ido longe demais. E acabam percebendo que as pessoas, até as adultas, podem ser frágeis como brinquedos.
Também há um momento assim, de "cair a ficha", no conto "Os terroristas".
Os alunos fazem um plano para mudar as próprias notas. Para cima, é claro. Tudo vai dando certo, exatamente como planejado. Mas na hora H bate uma dúvida...
O espírito infantil está presente mesmo nos contos em que só há adultos.
Aqui, os acordos que os casais fazem lembram os pactos infantis, em que não manter a palavra é ofensa grave. O namorado de "História de uma fita azul" quebra uma promessa sem querer, e tenta de todas as maneiras corrigir seu erro. E "O homem nu" tem problemas justamente porque a mulher resolveu cumprir o acordo até o fim!
O conto é assim: parece a fotografia de um momento marcante na vida dos personagens. Que, olhando bem, tem sempre alguma coisa a ver com a nossa!




PALAVRA DE AUTOR
Um bom conto é a glória!

Moacyr Scliar

"Toda literatura começa com o conto. O conto resulta de uma necessidade básica das pessoas, que é contar histórias.
Quando alguém se aproxima de nós e diz: "Você não imagina o que me aconteceu hoje", ou então "Isto me lembra uma coisa que ocorreu quando era criança" — podemos ter certeza de que ali há um conto em potencial, como também em uma notícia de jornal, em uma cena de rua, em um sonho, até.
Os relatos dos povos antigos são contos. Trechos da Bíblia são também contos. E as crianças adoram as histórias que os pais narram na hora que elas têm de ir para a cama.
As histórias podem ser narradas de maneira mais longa ou mais curta. Quando se trata de um personagem, ou de poucos personagens, e quando há um acontecimento central, de preferência com um final surpreendente (ou pelo menos que faça pensar), então estamos diante de um conto.
Particularmente, comecei como contista, talvez influenciado por meus pais, que eram grandes contadores de histórias — e que também me estimularam muito a ler. Tiro material para meus contos de qualquer lugar — de notícias para jornal, como falei, de histórias que ouço, de personagens que conheço, ou da simples imaginação.
O conto é um gênero extremamente fascinante. E é um desafio. Acho o conto uma grande forma literária. Um conto bom é imbatível como literatura. O problema é escrever um conto bom... No meu caso, muitas tentativas resultam frustradas, e então o jeito é jogar fora e esperar por outra idéia. Agora, quando há uma boa idéia, e quando ela é bem escrita, quando o próprio escritor se emociona com o que está fazendo, aí o conto é a glória!"



CONHECENDO MAIS
Anto o quê?!

Este livro é uma antologia de contos. Você sabe o que é isso?
Uma antologia é uma seleção parecida com a de futebol. Como você deve saber, antes de uma Copa do Mundo, um técnico escolhe aqueles que, na sua opinião, são os melhores jogadores para formar uma equipe que represente bem o país. Pois bem. Numa antologia, é parecido: alguém seleciona os melhores textos para fazer parte de um livro.
Esse alguém é o editor ou organizador.
Da mesma forma que acontece no futebol, uma boa antologia não depende só de haver bons textos a escolher. Às vezes o técnico convoca ótimos jogadores, mas quando ficam no mesmo time não se entendem e acabam jogando mal.
Com os textos é a mesma coisa. É fundamental escolher textos que funcionem bem juntos. Para isso, é importante ter critério, ou seja, saber como é o tipo de texto que se quer e só escolher os que forem assim.



Tipos de antologia

Para entender essa história de antologia, a melhor coisa é dar alguns exemplos. É preciso definir o gênero de texto (poesia, conto, crônica...) e os critérios de organização. Uma antologia pode ser:

• “de vários autores”:
como este livro, em que cada um dos oito contos é de um autor diferente.

• “de um autor só”:
como o livro “Histórias que o povo conta”, de Ricardo Azevedo (desta coleção).
Todos os textos são dele, mas têm origens diferentes. Alguns foram selecionados de outros livros, outros eram inéditos.

• “temática”:
como o livro “Varal de poesia” (desta coleção). Só entraram no livro poemas que tivessem a ver com certos temas.




Questão de gosto, também

Mas, por mais que usem os mesmos critérios, duas pessoas dificilmente farão a mesma antologia. Isso porque esse trabalho sempre acaba envolvendo também questões de gosto e opinião. Assim como uma seleção de futebol, uma antologia é feita por seres humanos, não por computadores.



De onde vieram os textos deste livro?

"História de uma fita azul", de Machado de Assis, foi lançado em capítulos no “Jornal das Famílias”, do Rio de Janeiro, entre 1875 e 1876. "Sem ? é impossível perguntar", de Ignácio de Loyola Brandão, é inédito. Os outros foram originalmente publicados nos seguintes livros:

"O homem nu" (Fernando Sabino): “O homem nu” (1960).
"O leão" (Dalton Trevisan): “Mistérios de Curitiba” (1968).
"Os terroristas" (Moacyr Scliar): “Um país chamado infância” (1989).
"A primeira minhoca" (Domingos Pellegrini): “Bicho-gente” (1998).
"A incapacidade de ser verdadeiro" (Carlos Drummond de Andrade): “Contos Plausíveis” (1981).
"Dezembro no bairro" (Lygia Fagundes Telles): “Seleta” (1965).

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